Viajantes Interplanetários

Mostrando postagens com marcador João Cabral de Melo Neto. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador João Cabral de Melo Neto. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, 21 de março de 2014

TV MARTE NO AR: João Cabral de Melo Neto - De Lá Pra Cá


João Cabral de Melo Neto é um dos maiores poetas brasileiros e um dos gigantes da literatura em língua portuguesa. Criou um estilo inconfundível, propôs uma estética nova, influenciou várias gerações nas décadas de 50 e 60. Quase ganhou um Nobel pelos 20 livros que escreveu. 

Também foi diplomata ao longo de 40 anos. Fez amizades com artistas importantes, recebeu honrarias e tem a obra estudada em centros acadêmicos prestigiados. 

Participam do programa Ferreira Gullar, José Castello, Ariano Suassuna, Domício Proença Filho, José Dumont.

O programa, apresentado por Ancelmo Gois e Vera Barroso, vai ao ar, todo domingo às 18h, na TV BRASIL. Reprises nas sextas-feiras, às 20h30.


Assistir


assistir (parte II)

segunda-feira, 2 de julho de 2012

depois de 3 horas de engarrafamento meu poema da noite é esse aqui:

Meios de transporte
O câncer é aquele ônibus
que ninguém quer mas com que conta;
não se corre atrás dele,
mas quando ele passa se toma;

que ninguém quer mas sabe;

e que um dia ao sair-se do sono,
lá está, semi-surpresa,
quase pontual, no seu ponto.

                           
Sem pontos de parada,
solto nas ruas como um táxi,
sem o esperar, querer,
sem ter por que, se toma o enfarte:

táxi que, de repente,

ao lado de quem não se pensava,
pára, no meio-fio,
toma, quem não o vira ou chamara. 


João Cabral

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

JOÃO CABRAL DE MELO NETO POR ELIS REGINA



1.1.
Se diz a palo seco
o cante sem guitarra;
o cante sem; o cante;
o cante sem mais nada;
se diz a palo seco
a esse cante despido:
ao cante que se canta
sob o silêncio a pino.
1.2.
O cante a palo seco
é o cante mais só:
é cantar num deserto
devassado de sol;
é o mesmo que cantar
num deserto sem sombra
em que a voz só dispõe
do que ela mesma ponha.
1.3.
O cante a palo seco
é um cante desarmado:
só a lâmina da voz
sem a arma do braço;
que o cante a palo seco
sem tempero ou ajuda
tem de abrir o silêncio
com sua chama nua.
1.4.
O cante a palo seco
não é um cante a esmo:
exige ser cantado
com todo o ser aberto;
é um cante que exige
o ser-se ao meio-dia,
que é quando a sombra foge
e não medra a magia.
2.1.
O silêncio é um metal
de epiderme gelada,
sempre incapaz das ondas
imediatas da água;
A pele do silêncio
pouca coisa arrepia:
o cante a palo seco
de diamante precisa.
2.2.
Ou o silêncio é pesado,
é um líquido denso,
que jamais colabora
nem ajuda com ecos;
mais bem, esmaga o cante
e afoga-o, se indefeso:
a palo seco é um cante
submarino ao silêncio.
2.3.
Ou o silêncio é levíssimo,
é líquido e sutil
que se ecoa nas frestas
que no cante sentiu;
o silêncio paciente
vagaroso se infiltra,
apodrecendo o cante
de dentro, pela espinha.
2.4.
Ou o silêncio é uma tela
que difícil se rasga
e que quando se rasga
não demora rasgada;
quando a voz cessa, a tela
se apressa em se emendar:
tela que fosse de água,
ou como tela de ar.
3.1.
A palo seco é o cante
de todos mais lacônico,
mesmo quando pareça
estirar-se um quilômetro:
enfrentar o silêncio
assim despido e pouco
tem de forçosamente
deixar mais curto o fôlego.
3.2.
A palo seco é o cante
de grito mais extremo:
tem de subir mais alto
que onde sobe o silêncio;
é cantar contra a queda,
é um cante para cima,
em que se há de subir
cortando, e contra a fibra.
3.3.
A palo seco é o cante
de caminhar mais lento:
por ser a contra-pelo,
por ser a contra-vento;
é cante que caminha
com passo paciente:
o vento do silêncio
tem a fibra de dente.
3.4.
A palo seco é o cante
que mostra mais soberba;
e que não se oferece:
que se toma ou se deixa;
cante que não se enfeita,
que tanto se lhe dá;
é cante que não canta,
cante que aí está.
4.1.
A palo seco canta
o pássaro sem bosque,
por exemplo: pousado
sobre um fio de cobre;
a palo seco canta
ainda melhor esse fio
quando sem qualquer pássaro
dá o seu assovio.
4.2.
A palo seco cantam
a bigorna e o martelo,
o ferro sobre a pedra
o ferro contra o ferro;
a palo seco canta
aquele outro ferreiro:
o pássaro araponga
que inventa o próprio ferro.
4.3.
A palo seco existem
situações e objetos:
Graciliano Ramos,
desenho de arquiteto,
as paredes caiadas,
a elegância dos pregos,
a cidade de Córdoba,
o arame dos insetos.
4.4
Eis uns poucos exemplos
de ser a palo seco,
dos quais se retirar
higiene ou conselho:
não o de aceitar o seco
por resignadamente,
mas de empregar o seco
porque é mais contundente.


João Cabral de Melo Neto

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Poema(s) da Cabra



Nas margens do Mediterrâneo
não se vê um palmo de terra
que a terra tivesse esquecido
de fazer converter em pedra.

Nas margens do Mediterrâneo
Não se vê um palmo de pedra
que a pedra tivesse esquecido
de ocupar com sua fera.

Ali, onde nenhuma linha
pode lembrar, porque mais doce,
o que até chega a parecer
suave serra de uma foice,

não se vê um palmo de terra
por mais pedra ou fera que seja,
que a cabra não tenha ocupado
com sua planta fibrosa e negra.
                     1
A cabra é negra. Mas seu negro
não é o negro do ébano douto
(que é quase azul) ou o negro rico
do jacarandá (mais bem roxo).

O negro da cabra é o negro
do preto, do pobre, do pouco.
Negro da poeira, que é cinzento.
Negro da ferrugem, que é fosco.

Negro do feio, às vezes branco.
Ou o negro do pardo, que é pardo.
disso que não chega a ter cor
ou perdeu toda cor no gasto.

É o negro da segunda classe.
Do inferior (que é sempre opaco).
Disso que não pode ter cor
porque em negro sai mais barato.
                     2
Se o negro quer dizer noturno
o negro da cabra é solar.
Não é o da cabra o negro noite.
É o negro de sol. Luminar.

Será o negro do queimado
mais que o negro da escuridão.
Negra é do sol que acumulou.
É o negro mais bem do carvão.

Não é o negro do macabro.
Negro funeral. Nem do luto.
Tampouco é o negro do mistério,
de braços cruzados, eunuco.

É mesmo o negro do carvão.
O negro da hulha. Do coque.
Negro que pode haver na pólvora:
negro de vida, não de morte.
                             3
O negro da cabra é o negro
da natureza dela cabra.
Mesmo dessa que não é negra,
como a do Moxotó, que é clara.

O negro é o duro que há no fundo
da cabra. De seu natural.
Tal no fundo da terra há pedra,
no fundo da pedra, metal.

O negro é o duro que há no fundo
da natureza sem orvalho
que é a da cabra, esse animal
sem folhas, só raiz e talo,

que é a da cabra, esse animal
de alma-caroço, de alma córnea,
sem moelas, úmidos, lábios,
pão sem miolo, apenas côdea.

                     4
Quem já encontrou uma cabra
que tivesse ritmos domésticos?
O grosso derrame do porco,
da vaca, do sono e de tédio?

Quem encontrou cabra que fosse
animal de sociedade?
Tal o cão, o gato, o cavalo,
diletos do homem e da arte?

A cabra guarda todo o arisco,
rebelde, do animal selvagem,
viva demais que é para ser
animal dos de luxo ou pajem.

Viva demais para não ser,
quando colaboracionista,
o reduzido irredutível,
o inconformado conformista.
                     5
A cabra é o melhor instrumento
de verrumar a terra magra.
Por dentro da serra e da seca
não chega onde chega a cabra.

Se a serra é terra, a cabra é pedra.
Se a serra é pedra, é pedernal.
Sua boca é sempre mais dura
que a serra, não importa qual.

A cabra tem o dente frio,
a insolência do que mastiga.
Por isso o homem vive da cabra
mas sempre a vê como inimiga.

Por isso quem vive da cabra
e não é capaz do seu braço
desconfia sempre da cabra:
diz que tem parte com o Diabo.
                     6
Não é pelo vício da pedra,
por preferir a pedra à folha.
É que a cabra é expulsa do verde,
trancada do lado de fora.

A cabra é trancada por dentro.
Condenada à caatinga seca.
Liberta, no vasto sem nada,
proibida, na verdura estreita.

Leva no pescoço uma canga
que a impede de furar as cercas.
Leva os muros do próprio cárcere:
prisioneira e carcereira.

Liberdade de fome e sede
da ambulante prisioneira.
Não é que ela busque o difícil:
é que a sabem capaz de pedra.
                    7
A vida da cabra não deixa
lazer para ser fina ou lírica
(tal o urubu, que em doces linhas
voa à procura da carniça).

Vive a cabra contra a pendente,
sem os êxtases das decidas.
Viver para a cabra não é
re-ruminar-se introspectiva.

É, literalmente, cavar
a vida sob a superfície,
que a cabra, proibida de folhas,
tem de desentranhar raízes.

Eis porque é a cabra grosseira,
de mãos ásperas, realista.
Eis porque, mesmo ruminando,
não é jamais contemplativa.
                     8
O núcleo de cabra é visível
por debaixo de muitas coisas.
Com a natureza da cabra
outras aprendem sua crosta.

Um núcleo de cabra é visível
em certos atributos roucos
que têm as coisas obrigadas
a fazer de seu corpo couro.

A fazer de seu couro sola,
a armar-se em couraças, escamas:
como se dá com certas coisas
e muitas condições humanas.

Os jumentos são animais
que muito aprenderam com a cabra.
O nordestino, convivendo-a,
fez-se de sua mesma casta.
                      9
O núcleo de cabra é visível
debaixo do homem do Nordeste.
Da cabra lhe vem o escarpado
e o estofo nervudo que o enche.

Se adivinha o núcleo de cabra
no jeito de existir, Cardozo,
que reponta sob seu gesto
como esqueleto sob o corpo.

E é outra ossatura mais forte
que o esqueleto comum, de todos;
debaixo do próprio esqueleto,
no fundo centro de seus ossos.

A cabra deu ao nordestino
esse esqueleto mais de dentro:
o aço do osso, que resiste
quando o osso perde seu cimento.
                     *
O Mediterrâneo é mar clássico,
com águas de mármore azul.
Em nada me lembra das águas
sem marca do rio Pajeú.

As ondas do Mediterrâneo
estão no mármore traçadas.
Nos rios do Sertão, se existe,
a água corre despenteada.

As margens do Mediterrâneo
parecem deserto balcão.
Deserto, mas de terras nobres
não da piçarra do Sertão.

Mas não minto o Mediterrâneo
nem sua atmosfera maior
descrevendo-lhe as cabras negras
em termos da do Moxotó.

João Cabral de Melo Neto


quinta-feira, 28 de abril de 2011

CONFRONTOS E CONFLUÊNCIAS

          Fala, galera! Bom, a coluna não anda com a mesma frequência de antes, sei. Mas a gente vai tentando por a ordem em casa. Então, a partir de agora a coluna acontecerá quinzenalmente sempre às quintas, beleza? Depois eu penso em algo para compensar.
          Alguns poderão dizer que é forçação de barra os dois textos que estaram aqui hoje. Mas os dois poetas prometem um dos mais emocionantes embates do Confrontos e Confluências: João Cabral de Melo Neto e Alberto da Cunha Melo, separados pela diferença de uma letra no título dos seus poemas, aqui vamos nós:

TECENDO A MANHÃ

Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

*                         

E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.


(João Cabral de Melo Neto)


TEMENDO A MANHÃ

Não corras da manhã:
enquanto vivas,
ela te alcança
com sua ameaça
ou sua promessa;
enquanto vivas,
a manhã te persegue
com dedos de luz
invadindo teu quarto
por baixo da porta,
feito carta acesa,
gritos de crianças
ou buzinas da pressa,
que já te acordaram
para sua ameaça
ou sua promessa.


(Alberto da Cunha Melo)
 

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

CONFRONTOS E CONFLUÊNCIAS

                Hoje a coluna é com dois pesos pesados. Dois magros. Dois gênios. João Cabral de Melo Neto e José Paulo Paes. E aí? Alguém consegue escolher um lado para torcer? Eu vou me vestir, oportunamente, de minha neutralidade e ficar em cima do muro.
                O engenheiro. Esse é o poema de Cabral que vai competir na coluna. O engenheiro. Esse é o poema de Paes que vai competir na coluna. Ambos os poetas estão em sua fase de estréia. Cabral saído de A PEDRA DO SONO (1942) e OS TRÊS MAL-AMADOS (1943) com o seu livro homônimo de 1945; e, José Paulo Paes tirando o cabaço com O ALUNO (1947). Vamos à brincadeira?


O ENGENHEIRO
                A Antônio B. Baltar

A luz, o sol, o ar livre
envolvem o sonho do engenheiro.
O engenheiro sonha coisas claras:
superfícies, tênis, um copo de água.

O lápis, o esquadro, o papel;
o desenho, o projeto, o número:
o engenheiro pensa o mundo justo,
mundo que nenhum véu encobre.

(Em certas tardes nós subíamos
ao edifício. A cidade diária,
como um jornal que todos liam,
ganhava um pulmão de cimento e vidro.)

A água, o vento, a claridade
de uma lado o rio, alto as nuvens,
situavam na natureza o edifício
crescendo de suas forças simples.


(João Cabral de Melo Neto)


O ENGENHEIRO

O homem trabalha
entre a rosa e o trânsito.
Ondas contínuas no seu dorso
de pedra e nuvem.
Martelos.
No papel intacto há linhas
fundamentos de aurora, estrutura
de um mundo pressentido, linhas.

As rosas se dividem
por canteiros iguais
e um pássaro
pousou no arranha-céu.

Quando o engenheiro terminar
o sentimento e a planta,
mãos frescas como folhas
virão sobre o meu corpo.


(José Paulo Paes)
   

sábado, 29 de janeiro de 2011

Palavras de João

    

..................................................................................

E não esqueça! Todo sábado, uma nova overdose semanal de cajuína:
Sábados de Caju
  

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

CONFRONTOS E CONFLUÊNCIAS

          Depois de uma pausa involuntária devido às ocupações extra-poéticas desse que vos fala, e depois de duas semanas sem poemas (mas com Raul Seixas & Sérgio Sampaio e Pink Floyd em versões de dub e brega), a coluna CONFRONTOS E CONFLUÊNCIAS volta a pôr poetas no palco nessa quinta-feira. E não são quaisquer poetas, João Cabral de Melo Neto e Ferreira Gullar entram em cena entremeados com os seus galos.
          Cada um com suas particularidades e enfoques específicos, os galos entram em cena para o combate. Há uma notável confluência entre ambos: JCMN afirma que: um galo sozinho não tece uma manhã, bem como Gullar: vê-se o canto é inútil. Como o POETAS DE MARTE não vai fazer nenhuma aologia às brigas de galo, deixamos o leitor com um confronto muito mais saudável. Evoé!


TECENDO A MANHÃ

Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

*

E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.


(João Cabral de Melo Neto)


GALO GALO

O galo
no saguão quieto.

Galo galo
de alarmante crista, guerreiro,
medieval.

De córneo bico e
esporões, armado
contra a morte,
passeia.

Mede os passos. Pára.
Inclina a cabeça coroada
dentro do silêncio
— que faço entre coisas?
— de que me defendo?

Anda
no saguão.
O cimento esquece
o seu último passo

Galo as penas que
florescem da carne silenciosa
e o duro bico e as unhas e o olho
sem amor. Grave
solidez.
Em que se apóia
tal arquitetura?

Saberá que, no centro
de seu corpo, um grito
se elabora?

Como, porém, conter,
uma vez concluído,
o canto obrigatório?

Eis que bate as asas, vai
morrer, encurva o vertiginoso pescoço
donde o canto rubro escoa. 

Mas a pedra, a tarde,
o próprio feroz galo
subsistem ao grito. 

Vê-se o canto é inútil. 

O galo permanece — apesar
de todo o seu porte marcial —
só, desamparado,
num saguão do mundo.
Pobre ave guerreira! 

Outro grito cresce
agora no sigilo
de seu corpo; grito
que, sem essas penas
e esporões e crista
e sobretudo sem esse olhar
de ódio,
        não seria tão rouco
e sangrento. 

Grito, fruto obscuro
e extremo dessa árvore: galo.
Mas que, fora dele,
é mero complemento de auroras.


(Ferreira Gullar)
   

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

CONFRONTOS E CONFLUÊNCIAS

          Vinicius dissera que os poemas de João só falavam de pedras e cabras. João dissera que Vinicius era o maior poeta que o Brasil não teve. Nessa dialética a síntese é amizade; entretanto, os dois diplomatas vinham-se como opostos na poesia. Enquanto um fazia questão de musicar seus versos, o outro odiava a música. Passional. Racional. Vinicius. João.
          Nessa quinta o Confrontos e Confluências traz ao palco o poetinha e o engenheiro com os poemas Retrato à sua maneira e Resposta a Vinicius de Morais. Não de forma belicosa, mas de forma amistosa, afinal, conforme supracitado, se há uma síntese nos dois é a amizade mútua. Um luxo aqui no único blog interplanetário das Américas!


RETRATO À SUA MANEIRA

Magro entre pedras
Calcárias possível
Pergaminho para
A anotação gráfica

O grafito Grave
Narra poema o
Fêmur fraterno
Radiografável a

Olho nu árido
Como o deserto
E além Tu
Irmão totem aedo

Exato e provável
No friso do tempo
Adiante Ave
Camarada diamante!


(Vinicius de Moraes)


RESPOSTA A VINICIUS DE MORAES

Não sou diamante nato
nem consegui cristalizá-lo:
se ele te surge no que faço
será um diamante opaco
de quem por incapaz do vago
quer de toda forma evitá-lo,
senão com o melhor, o claro,
do diamente, com o impacto:
com a pedra, a aresta, com o aço
do diamante industrial, barato,
que incapaz de ser cristal raro
vale pelo que tem de cacto.


(João Cabral de Melo Neto)

terça-feira, 27 de julho de 2010

ANTI-CHAR

Poesia intransitiva,
sem mira e pontaria:
sua luta com a língua acaba
dizendo que a língua diz nada.

É uma luta fantasma,
vazia, contra nada;
não diz a coisa, diz vazio;
nem diz coisas, é balbucio.


João Cabral de Melo Neto
              

sábado, 29 de maio de 2010

Um casal, dois poemas

     
AS FRUTAS DE PERNAMBUCO

Pernambuco, tão masculino,
que agrediu tudo, de menino,

é capaz das frutas mais fêmeas
e da femeeza mais sedenta.

São ninfomaníacas, quase,
no dissolver-se, no entregar-se,

sem nada guardar-se, de puta.
Mesmo nas ácidas, o açúcar,

é tão carnal, grosso, de corpo,
de corpo para corpo, o coito,

que mais na cama que na mesa
seria cômodo querê-las.


(João Cabral de Melo Neto)


EPIGRAMA

Bom é ser árvore, vento:
sua grandeza inconsciente.
E não pensar, não temer.
Ser, apenas. Altamente.

Permanecer uno e sempre
só e alheio à própria sorte.
Com o mesmo rosto tranqüilo
diante da vida ou da morte.


(Marly de Oliveira)

..................................................................................
E não esqueça! Todo sábado, uma nova overdose semanal de cajuína: Sábados de Caju

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Homenagem singela

  
Evoé! Um ano de POETAS DE MARTE! Cheguei aqui há pouco tempo, mas não poderia deixar de homenagear o blog com o pouco que posso contribuir. Mas calma lá com esse pouco! Pois é apenas o mínimo em matéria de máximo, como certa vez disse um tal de Paulo Leminski. Mas sem delongas, o meu presente para o POETAS DE MARTE, e sobretudo para os que acompanham esse blog é deixar-lhes com a leitura daquele que considero o maior poeta de todos os tempos, línguas e lugares: João Cabral de Melo Neto. O poema que escolhi é o Alguns Toureiros, mas o que se seguirá é um fragmento do mesmo com as quadras finais do texto. A lição que aprendi com esse poema resultou, nada mais nada menos, na minha base metodológica para se escrever e ler poesia. Sim, sou metódico ao extremo, minha mão é contida e assim acredito ser esse o caminho para que eu continue escrevendo poemas. E não há presente maior do que se defender com cabeça erguida aquilo que você acredita. Parabéns a todos! Fala aí, Cabral:


ALGUNS TOUREIROS
(excerto)

[...]

como domar a explosão
com mão serena e contida,
sem deixar que se derrame
a flor que traz escondida,

e como, então, trabalhá-la
com mão certa, pouca e extrema:
sem perfumar sua flor,
sem poetizar seu poema.


João Cabral de Melo Neto

domingo, 28 de fevereiro de 2010

O Ovo de Galinha


I

Ao olho mostra a integridade
de uma coisa num bloco, um ovo.
Numa só matéria, unitária,
maciçamente ovo, num todo.

Sem possuir um dentro e um fora,
tal como as pedras, sem miolo:
é só miolo: o dentro e o fora
integralmente no contorno.

No entanto, se ao olho se mostra
unânime em si mesmo, um ovo,
a mão que o sopesa descobre
que nele há algo suspeitoso:

que seu peso não é o das pedras,
inanimado, frio, goro;
que o seu é um peso morno, túmido,
um peso que é vivo e não morto.

II

O ovo revela o acabamento
a toda mão que o acaricia,
daquelas coisas torneadas
num trabalho de toda a vida.

E que se encontra também noutras
que entretanto mão não fabrica:
nos corais, nos seixos rolados
e em tantas coisas esculpidas

cujas formas simples são obra
de mil inacabáveis lixas
usadas por mãos escultoras
escondidas na água, na brisa.

No entretanto, o ovo, e apesar
de pura forma concluída,
não se situa no final:
está no ponto de partida.

III

A presença de qualquer ovo,
até se a mão não lhe faz nada,
possui o dom de provocar
certa reserva em qualquer sala.

O que é difícil de entender
se se pensa na forma clara
que tem um ovo, e na franqueza
de sua parede caiada.

A reserva que um ovo inspira
é de espécie bastante rara:
é a que se sente ante um revólver
e não se sente ante uma bala.

É a que se sente ante essas coisas
que conservando outras guardadas
ameaçam mais com disparar
do que com a coisa que disparam.

IV

Na manipulação de um ovo
um ritual sempre se observa:
há um jeito recolhido e meio
religioso em quem o leva.

Se pode pretender que o jeito
de quem qualquer ovo carrega
vem da atenção normal de quem
conduz uma coisa repleta.

O ovo porém está fechado
em sua arquitetura hermética
e quem o carrega, sabendo-o,
prossegue na atitude regra:

procede ainda da maneira
entre medrosa e circunspeta,
quase beata, de quem tem
nas mãos a chama de uma vela.

João Cabral de Melo Neto

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Os Três Mal-Amados

O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.
O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.
O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.
O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.
Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto, mas que parecia uma usina.
O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.
O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.
O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.
O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.
O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.
O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.


MELO NETO, João Cabral. Obras Completas. Rio de Janeiro: Nova Aguiar, 1994.