"Hoje,
eu vou chorar", dizia com pleno entendimento dos seus sentimentos aos
quase quatro anos de idade. O carro havia estacionado no posto de saúde, seus
pais se surpreenderam com a frase. Não sabia o que era asma ou tratamento, mas
tinha a certeza de que não gostava de injeção. Uma por semana. Normalmente, pai
e mãe diziam-lhe que não doía, mas hoje ele estava experiente. "Mas porque
vai chorar? Você é tão forte! Semana passada você nem chorou. Depois, a gente
sai e toma um picolé.", disse mãe. Reforçou desafiadoramente: "Hoje,
eu vou chorar!", convicto de seus ideais. Desceu do carro e caminhou de
mãos dadas entre os pais. Mãe tentava demovê-lo. "É só uma picadinha de
formiguinha, não dói". Nada falava. Ao chegar perto, viu a fila com outras
crianças, o posto parecia estar mais cheio do que de costume. Algumas até brincavam
e riam em sua ignorância (ou coragem, não sabia), outras choravam assim que saiam
da sala maldita, a qual todos aguardavam entrar. Pobres coitados! Sentiu-se
apreensivo e pediu para ficar no colo. Mãe não lhe recusou e continuou sua
ladainha. Ele estava impassível naquele dia, e não dava atenção ao que mãe lhe
dizia. Era todo apreensão, atento e torcendo para que nunca chegasse a sua vez,
mas no fundo sabia: era inevitável. Ouviu a moça de branco chamar-lhes:
"Mãe, é a vez de vocês", apontando-lhes o dedo. "É a de
asma", disse mãe ao entrar na sala. E, logo, comentou com a outra moça de
branco, como quem contava uma anedota: "Ele disse que hoje vai chorar".
A moça riu e falou: "Vai nada, esse menino corajoso, é só uma picadinha de
formiguinha". Respondeu: "Dói sim.", dando a seriedade merecida
ao momento. Logo, ela escondeu o riso com a máscara branca, e tirou sua agulha
de um isopor, com o vidrinho. Puxando o líquido da ampola, pediu que lhe mostrasse
o braço. Ele não se recusou, senão ajudou. Levantou a camisa com pesar e olhos
fixos nos olhos de seu carrasco. Logo, sentiu o ferrão do escorpião perfurando
sua pele, o veneno gelado e ardido adentrando seu corpo. Deu um grito fino e
derramou duas lágrimas. Olhou para todos, e logo, voltou o rosto para mãe e
disse de modo provocador, com uma voz cheia de tristeza: "chorei".
Viajantes Interplanetários
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quarta-feira, 7 de novembro de 2012
domingo, 26 de agosto de 2012
Visão Periférica: Ilhados culturalmente (Ou o clássico desconhecido)
Aqui no Brasil, temos um pequeno problema em relação aos demais
países da América Latina: o português. Não falo isto por não gostar de nossa
língua-mãe ou por não achá-la sonora ou ainda por talvez achar o espanhol mais
melodioso que ela. Nada disto é verdade. A discussão se uma língua é "mais
bonita" que outra também me parece totalmente irrelevante e bobinha, coisa
de criança que disputa com o coleguinha quem tem o "brinquedo mais
legal" ou "pai mais forte".
O português é um
problema graças ao isolamento linguístico que ele nos provoca. O brasileiro
médio nem pára para lembrar que é latino americano, até porque em um país de
monoglotas, o espanhol ou qualquer outra língua ainda são duras barreiras a
serem ultrapassadas. Portanto, parece sempre que há um "eles" latino-americanos e não necessariamente um "nós".
Além disto, a
grande mídia, em geral, nos dá acesso quase sempre ao que há de pior dentro da
cultura alheia, ou seja, tudo aquilo que seja capaz de vender de carros a
pasta-de-dente, absorventes e ração para gatos. Isto é simples de se notar quando
sabemos que o escritor brasileiro mais vendido no mundo é Paulo Coelho e que o
sucesso mundial do último janeiro foi o Michel Teló com sua incomparável
"Ai... se eu te pego".
Por isso, mesmo as
pessoas com uma maior formação cultural em relação a maioria dos brasileiros,
ignora quase que totalmente o que acontece com nossos vizinhos latinos. Então
se você já leu Neruda, Borges, García Márquez, Quiroga, Galeano ou Vargas
Llosa, pode ter certeza que você faz parte de uma minoria (bem minoritária) da
população brasileira. São escritores que não deveriam ser ignorados, mas
ensinados nas escolas. Melhor que os meninos conheçam bons livros do que essa
preocupação bairrista de que um jovem de catorze anos leia "A Moreninha",
um dos livros mais medíocres da literatura mundial e que é insistentemente
martelado pelos nossos queridos professores de literatura. Não que não existam bons
autores no Brasil, mas é que além de lermos pouco os bons autores, gastamos muito tempo fazendo com que nossas crianças odeiem ler.
Enfim, falo tudo
isto aqui, por uma questão bem simples: quem aqui já ouviu falar de Los
Jaivas? Essa é uma banda chilena fundada desde 1963 que segue em
atividade constante, seu som mistura a música folclórica andina com rock
progressivo, jazz etc. Eles já gravaram músicas de diversos grandes
compositores, tais quais Violeta Parra, Victor Jarra, Osvaldo Rodríguez (sei
que são desconhecidos da maioria, mas posso garantir que são de primeira linha)
e ninguém menos que Pablo Neruda.
Ponho aqui um
clássico: a gravação completa da TV peruana feita em 1981, em Macchu Picchu do
disco em que Los Jaivas musicaram os poemas de Neruda. Além disto, no vídeo vários
poemas do mesmo autor são recitados por Mario Vargas Llosa e, para completar o
cenário, tudo foi gravado nas Alturas
de Macchu Picchu, que é, inclusive, como se chama este
trabalho. Um amigo peruano quando me mostrou pela primeira vez esta banda disse
"Es el Pink Floyd andino", depois de escutá-los, achei bastante
pertinente a associação.
Deixo vocês aqui
com a certeza de não estar jogando pérolas aos porcos.
domingo, 13 de maio de 2012
VIsão Periférica: Bonobos
Compartilho noventa e oito porcento de toda minha existência com os bonobos. Até semana passada, nem sabia o que era um bonobo. Descobri que, assim como eu, o bonobo é uma espécie de macaco africano sem rabo, tal qual o chimpanzé e o gorila.
Temos mais em comum do que eu mesmo poderia prever com um olhar menos atento. Ainda assim, não são meus parentes mais próximos. Tudo indica que o chimpanzpe ainda está entre nós. Somos primos, mas não nos conhecemos.
Admiro os bonobos e não consigo duvidar deles. Eles não costumam enganar-se. Não mentem olhando nos olhos uns dos outros. Não enforcam seus semelhantes usando seus polegares opositores.
Alguns outros parentes meus, bem mais próximos infelizmente, justificam serem fruto de um tal barro divino. Por conta disto, teriam sido feitos a imagem e semelhança bizarra de um certo criador que soprou-lhes a vida por suas narinas, rejeitando completamente os coitados dos bonobos. Sendo assim, seríamos em algo superiores a bonobos, chimpanzés, gorilas etc.
Então, pobre criador que decidiu construir uma criatura tão digna de pena. Imagem e semelhança em quê? Em barro? Em alma? Em ódio, rancor e guerra? Pobre criador estúpido que ao criar seres tão burros e incapazes só comprovou sua própria incapacidade e estupidez. Talvez se o criador fosse um bonobo, a história da humanidade fosse bem diferente.
Pobre bonobo que é parente de um ser tão mesquinho como eu.
Temos mais em comum do que eu mesmo poderia prever com um olhar menos atento. Ainda assim, não são meus parentes mais próximos. Tudo indica que o chimpanzpe ainda está entre nós. Somos primos, mas não nos conhecemos.
Admiro os bonobos e não consigo duvidar deles. Eles não costumam enganar-se. Não mentem olhando nos olhos uns dos outros. Não enforcam seus semelhantes usando seus polegares opositores.
Alguns outros parentes meus, bem mais próximos infelizmente, justificam serem fruto de um tal barro divino. Por conta disto, teriam sido feitos a imagem e semelhança bizarra de um certo criador que soprou-lhes a vida por suas narinas, rejeitando completamente os coitados dos bonobos. Sendo assim, seríamos em algo superiores a bonobos, chimpanzés, gorilas etc.
Então, pobre criador que decidiu construir uma criatura tão digna de pena. Imagem e semelhança em quê? Em barro? Em alma? Em ódio, rancor e guerra? Pobre criador estúpido que ao criar seres tão burros e incapazes só comprovou sua própria incapacidade e estupidez. Talvez se o criador fosse um bonobo, a história da humanidade fosse bem diferente.
Pobre bonobo que é parente de um ser tão mesquinho como eu.
diretamente da periferiadomundo
terça-feira, 1 de maio de 2012
Visão Periférica: Kafka de Crumb

Depois de uma longa ausência, publico aqui mais uma Visão Periférica. Desta vez serei curto o suficiente para resumir o meu texto em poucas palavras: leiam Kafka de Crumb!

No entanto, sei que preciso explicar-lhes do que se trata. Bem, Franz Kafka dispensa apresentações, é um dos maiores gênios literários que já passaram pela face desta terra esquisita. Atormentado e vivendo com seus pais até o final de sua vida, não publicou nada e quando morreu pediu a seu melhor amigo que queimasse praticamente tudo o que tinha feito. Para nossa sorte, o amigo tratou de editar e publicar cada linha e assim chegaram até nós textos como O Processo, A Metamorfose e Um Artista da Fome, só para dar alguns exemplos.

Dono de um traço muito característico e usando apenas nanquim e bico de pena, ele recria a vida de Kafka, seus tormentos cotidianos e reconta também alguns de seus principais contos com seu tom sombrio e único. Traz também o excelente texto de David Mairowitz, que dá um tom pouco usual a biografia, pois ela é não linear e está repleta de tentativas de demonstrar qual era o imaginário que Kafka havia se encontrado previamente. Uma obra digna de usar o título de kafkiana.
Por isso, se tiverem a oportunidade leiam o quadrinho. Vale a pena ler tudo assinado por Franz Kafka. E vale também muito ler qualquer coisa que carregue o nome de Robert Crumb. Não é todo dia que vemos dois gênios de tamanho quilate reunidos .
sexta-feira, 2 de março de 2012
VISÃO PERIFÉRICA: Conversas com o Imbuá
Há de se entender que o começo do imbuá não é sua cauda, afinal de contas, não é com a cauda que ele conta suas histórias. Confesso, porém, que já escutei uma ou duas histórias contadas por caudas indiscretas de um ou outro, mas hoje essas coisas mudaram. Os imbuas não tagarelam mais com todas as partes do seu corpo. Eles se tornaram mais reservados. Soturnos. Arredios.
Você já notou que não é mais tão fácil encontrar os imbuas como quando éramos crianças, Fernando? Acho que eles aprenderam a se esconder de nós.
Lembra-se quando escutávamos os seus estalos embaixo de nossos pés? Lembra-se de quando juntávamos cinco ou seis deles e queimávamos numa fogueira?
Como éramos maus no auge de nossos nove anos. Éramos os senhores da vida e da morte. Podíamos fazer de tudo. Fazíamos nossa própria inquisição de abelhas, formigas, lesmas ou quaisquer outros seres que chamávamos genericamente de “insetos”, classificação esta que determinava basicamente tudo o que não tinha osso, creio eu, assim como os camarões... Não. Os camarões eram de água, então eram meio que “peixes”.
Tudo passava por um julgamento. Rã não era inseto. Calango também não. Passarinho também não, claro. Estes eram “bichos”, que é algo completamente diferente de “inseto” e de “peixe”. Por isso, mereciam nossa clemência: um apedrejamento piedoso do seu badoque, que parecia ter mira a laser e sempre acertava as cabeças das lagartixas; enquanto o meu, pouco acurado, deixava-as na maior parte das vezes escapar.
Mas os insetos... ah... eles não sabiam o que lhes esperava... Arrancávamos patas, perfurávamos os seus corpos com gravetos e assistíamos ao espetáculo da morte em nosso jardim.
Eles eram só “insetos” e nós, deuses do jardim.
E sempre havia aquele grito que movia os nossos mais primitivos instintos: “achei um.” Nossos preferidos eram os imbuas. Estranha predileção esta, que nos fazia arrancar suas cabeças, tostá-los até que virassem um estranho caracol de carvão e senti-los, depois, estalando-se embaixo de nossos pés. Pobres diabos. Morriam sem saber o porquê, sem nunca ter feito um nada qualquer, sem que o universo se desse por conta dele. Só nós e o seu trágico fim.
Alguns contavam-nos suas histórias a fim de tentar reduzir nossa fúria ou conseguir marejar nossos olhos. Vãs tentativas. Frustradas todas elas. Todos insetos sabem que somente duas coisas podem trazer lágrimas aos olhos de um deus aos nove anos: uma boa surra ou ferroada. E, enquanto, mãe ou qualquer animal não consiga fazer nenhuma delas, precisavam sujeitar-se a nós.
Mas hoje essas coisas mudaram, não foi mesmo, Fernando?! Não há mais prazer algum em torturar uma criatura tão indefesa quanto essa. Não há mais prazer em matar. Essas coisas ficaram na infância. A morte era um jogo, uma brincadeira como outra qualquer, como jogar bola ou correr. Recorda-se como corríamos, no meio da tarde, as gargalhadas.
Sinto tanta saudade daquele tempo, irmão. Sinto falta dos seus olhos travessos e do seu sorriso cúmplice impossível de copiar. Já tentei desenhá-lo tantas diversas vezes, mas nunca fica bom. Tentei sem sucesso encontrá-lo em alguma foto. Não que você não fosse muito risonho; de fato, você sorriu sempre dentro de um nível saudável para uma criança de sua idade e as fotos mostram isso. Só que nenhum de nossos antigos álbuns guarda esse sorriso que me lembro em seu rosto tão anguloso, tão parecido com o de pai. Tento usar-me como modelo. Ponho-me em frente ao espelho tentando reproduzir algo daquele seu sorriso, mas sempre me sai falso, estranho ou velho demais. Não é como o seu. Gostaria de ser um pintor de verdade para fazer exatamente como eu me lembro. Mas não foi isto o que me tornei. Nem isso, nem astronauta.
As coisas mudaram. Os tempos passaram, marcaram meus anos no traçado de minha testa e nos cabelos que estão mais esparsos. Os dias pararam de demorar tanto. Agora eles aceleram que nem Senna... não... que nem o Flash. E, de repente, quando olho para trás, outros dez anos se foram e não tivemos notícias um do outro.
Lembro-me de como você arrancava as pernas: uma a uma do imbua. Não existia no céu ou na terra maior torturador que você, Fernando! Nada era páreo para a sua sede de vísceras esbranquiçadas. Nem o seu caracol nem ninguém poderiam proteger o pequeno ser.
Mas as coisas mudaram muito. Disseram-me, um dia desses, que as pernas finas de alguns podem até transformar-se em duras agulhas que perfuram com facilidade a sua pele. Em meu ceticismo, duvidei que pudesse ser verdade. Obviamente, deveria se tratar de mais uma dessas coisas idiotas que gente vê na tevê. Duvidei até ter o primeiro contato com um desses seres vingativos que me atacou e deixou toda uma bochecha cheia de espinhos que mais pareciam um cacto. Demorei dois dias encontrando um e outro espinho ainda perdido na cara, mesmos depois de catar com uma pinça.
Esses não os mesmos imbuas daquele tempo. O imbua, entre os insetos, era o mais pacífico de todos, como ele só uma criatura que ironicamente deu-se por chamar soldadinho. Verdadeiros budas, frente a tudo o que lhes fazíamos. Se fossemos hindus, teríamos muito kharma para queimar... Talvez ainda tenhamos. E toda essa distância de nossas solidões seja parte disso. Será?
Será que tudo o que nos aconteceu foi parte do kharma ganho em nossa inocência macabra? Pobres diabos de nós se houver outra vida. Voltaremos como parasitas, talvez uma tênia ou uma barata ou um fungo. E teremos que rastejar, morar em esgotos ou intestinos humanos, talvez de porcos... sobreviveríamos talvez a um holocausto nuclear, coisa que nenhum de nós dois agora poderíamos fazer. Mas somente se os deuses forem tão cruéis quanto éramos... Ah! Fernando, ah! Aí voltaremos como imbuas, no quintal de um garoto por setenta vezes.
Digo setenta porque considero já estar pagando boa parte deste kharma nesta vida agora. Tudo o que nos aconteceu, Fernando. Éramos tão jovens.
Como aquilo aconteceu? Você se lembra? Eu não consigo me lembrar. Será que foi aquela noite depois do jantar, que você ficou com aquele seu olhar distante no jardim? Ou foi quando pai trouxe aquele disco que tinha aquela música que você gostou tanto? Será? Será que foi a música que mudou tudo? Ou fui eu? Talvez a culpa seja minha, não sua, nem de deus, Fernando.
Talvez eu seja, Fernando, o único culpado. Eu tive que adquirir esse tom meio que cerimonial em minha voz. Eu tive que remendar meus pensamentos mais confusos para tentar nos explicar. A culpa deve ser minha e, por isso, hoje, estamos tão separados e sós. Não seria honesto culpa-lo. Não foi culpa sua.
Seria humano culpar os deuses, pois fomos deuses na infância e aprendemos bem o que eles fazem. Conhecemos suas benevolências, caprichos e sorrisos. Mas talvez, os deuses tenham outra tarefa de casa por hoje.
Deve ter sido minha culpa.
Eu deveria tê-lo segurado enquanto girávamos, eu poderia ter segurado você. Talvez você não tivesse voado para tão longe.
Mas os imbuas ao enrolar-se em caracóis tem aquela triste tendência de contorcer-se em volta de sua cabeça, protegendo-a. Tal qual nós fazemos em pânico, quando caímos no chão. Quando choramos e soluçamos.
Você já notou que não é mais tão fácil encontrar os imbuas como quando éramos crianças, Fernando? Acho que eles aprenderam a se esconder de nós.
Lembra-se quando escutávamos os seus estalos embaixo de nossos pés? Lembra-se de quando juntávamos cinco ou seis deles e queimávamos numa fogueira?
Como éramos maus no auge de nossos nove anos. Éramos os senhores da vida e da morte. Podíamos fazer de tudo. Fazíamos nossa própria inquisição de abelhas, formigas, lesmas ou quaisquer outros seres que chamávamos genericamente de “insetos”, classificação esta que determinava basicamente tudo o que não tinha osso, creio eu, assim como os camarões... Não. Os camarões eram de água, então eram meio que “peixes”.
Tudo passava por um julgamento. Rã não era inseto. Calango também não. Passarinho também não, claro. Estes eram “bichos”, que é algo completamente diferente de “inseto” e de “peixe”. Por isso, mereciam nossa clemência: um apedrejamento piedoso do seu badoque, que parecia ter mira a laser e sempre acertava as cabeças das lagartixas; enquanto o meu, pouco acurado, deixava-as na maior parte das vezes escapar.
Mas os insetos... ah... eles não sabiam o que lhes esperava... Arrancávamos patas, perfurávamos os seus corpos com gravetos e assistíamos ao espetáculo da morte em nosso jardim.
Eles eram só “insetos” e nós, deuses do jardim.
E sempre havia aquele grito que movia os nossos mais primitivos instintos: “achei um.” Nossos preferidos eram os imbuas. Estranha predileção esta, que nos fazia arrancar suas cabeças, tostá-los até que virassem um estranho caracol de carvão e senti-los, depois, estalando-se embaixo de nossos pés. Pobres diabos. Morriam sem saber o porquê, sem nunca ter feito um nada qualquer, sem que o universo se desse por conta dele. Só nós e o seu trágico fim.
Alguns contavam-nos suas histórias a fim de tentar reduzir nossa fúria ou conseguir marejar nossos olhos. Vãs tentativas. Frustradas todas elas. Todos insetos sabem que somente duas coisas podem trazer lágrimas aos olhos de um deus aos nove anos: uma boa surra ou ferroada. E, enquanto, mãe ou qualquer animal não consiga fazer nenhuma delas, precisavam sujeitar-se a nós.
Mas hoje essas coisas mudaram, não foi mesmo, Fernando?! Não há mais prazer algum em torturar uma criatura tão indefesa quanto essa. Não há mais prazer em matar. Essas coisas ficaram na infância. A morte era um jogo, uma brincadeira como outra qualquer, como jogar bola ou correr. Recorda-se como corríamos, no meio da tarde, as gargalhadas.
Sinto tanta saudade daquele tempo, irmão. Sinto falta dos seus olhos travessos e do seu sorriso cúmplice impossível de copiar. Já tentei desenhá-lo tantas diversas vezes, mas nunca fica bom. Tentei sem sucesso encontrá-lo em alguma foto. Não que você não fosse muito risonho; de fato, você sorriu sempre dentro de um nível saudável para uma criança de sua idade e as fotos mostram isso. Só que nenhum de nossos antigos álbuns guarda esse sorriso que me lembro em seu rosto tão anguloso, tão parecido com o de pai. Tento usar-me como modelo. Ponho-me em frente ao espelho tentando reproduzir algo daquele seu sorriso, mas sempre me sai falso, estranho ou velho demais. Não é como o seu. Gostaria de ser um pintor de verdade para fazer exatamente como eu me lembro. Mas não foi isto o que me tornei. Nem isso, nem astronauta.
As coisas mudaram. Os tempos passaram, marcaram meus anos no traçado de minha testa e nos cabelos que estão mais esparsos. Os dias pararam de demorar tanto. Agora eles aceleram que nem Senna... não... que nem o Flash. E, de repente, quando olho para trás, outros dez anos se foram e não tivemos notícias um do outro.
Lembro-me de como você arrancava as pernas: uma a uma do imbua. Não existia no céu ou na terra maior torturador que você, Fernando! Nada era páreo para a sua sede de vísceras esbranquiçadas. Nem o seu caracol nem ninguém poderiam proteger o pequeno ser.
Mas as coisas mudaram muito. Disseram-me, um dia desses, que as pernas finas de alguns podem até transformar-se em duras agulhas que perfuram com facilidade a sua pele. Em meu ceticismo, duvidei que pudesse ser verdade. Obviamente, deveria se tratar de mais uma dessas coisas idiotas que gente vê na tevê. Duvidei até ter o primeiro contato com um desses seres vingativos que me atacou e deixou toda uma bochecha cheia de espinhos que mais pareciam um cacto. Demorei dois dias encontrando um e outro espinho ainda perdido na cara, mesmos depois de catar com uma pinça.
Esses não os mesmos imbuas daquele tempo. O imbua, entre os insetos, era o mais pacífico de todos, como ele só uma criatura que ironicamente deu-se por chamar soldadinho. Verdadeiros budas, frente a tudo o que lhes fazíamos. Se fossemos hindus, teríamos muito kharma para queimar... Talvez ainda tenhamos. E toda essa distância de nossas solidões seja parte disso. Será?
Será que tudo o que nos aconteceu foi parte do kharma ganho em nossa inocência macabra? Pobres diabos de nós se houver outra vida. Voltaremos como parasitas, talvez uma tênia ou uma barata ou um fungo. E teremos que rastejar, morar em esgotos ou intestinos humanos, talvez de porcos... sobreviveríamos talvez a um holocausto nuclear, coisa que nenhum de nós dois agora poderíamos fazer. Mas somente se os deuses forem tão cruéis quanto éramos... Ah! Fernando, ah! Aí voltaremos como imbuas, no quintal de um garoto por setenta vezes.
Digo setenta porque considero já estar pagando boa parte deste kharma nesta vida agora. Tudo o que nos aconteceu, Fernando. Éramos tão jovens.
Como aquilo aconteceu? Você se lembra? Eu não consigo me lembrar. Será que foi aquela noite depois do jantar, que você ficou com aquele seu olhar distante no jardim? Ou foi quando pai trouxe aquele disco que tinha aquela música que você gostou tanto? Será? Será que foi a música que mudou tudo? Ou fui eu? Talvez a culpa seja minha, não sua, nem de deus, Fernando.
Talvez eu seja, Fernando, o único culpado. Eu tive que adquirir esse tom meio que cerimonial em minha voz. Eu tive que remendar meus pensamentos mais confusos para tentar nos explicar. A culpa deve ser minha e, por isso, hoje, estamos tão separados e sós. Não seria honesto culpa-lo. Não foi culpa sua.
Seria humano culpar os deuses, pois fomos deuses na infância e aprendemos bem o que eles fazem. Conhecemos suas benevolências, caprichos e sorrisos. Mas talvez, os deuses tenham outra tarefa de casa por hoje.
Deve ter sido minha culpa.
Eu deveria tê-lo segurado enquanto girávamos, eu poderia ter segurado você. Talvez você não tivesse voado para tão longe.
Mas os imbuas ao enrolar-se em caracóis tem aquela triste tendência de contorcer-se em volta de sua cabeça, protegendo-a. Tal qual nós fazemos em pânico, quando caímos no chão. Quando choramos e soluçamos.
domingo, 5 de fevereiro de 2012
Visão Periférica: aquele livro de GUERRA DE HOLANDA
Queridíssimos marcianos,
venho aqui com mais um Visão Periférica. Trago um poeta que já apresentei anteriormente (clique aqui para ler o Visão Periférica n 2) e, como já tinha prometido, disponibilizo o livro O ROSTO de Guerra de Holanda integralmente para baixar gratuitamente. A versão digitalizada não está lá essas coisas, o livrinho que tenho é bem velho e o scanner não é dos melhores, mesmo assim, dá pra ler tranquilo.
Segundo seu filho, Lula, Guerra de Holanda não estava preocupado com o lucro de seus livros, inclusive recebeu pouquíssimo por sua produção. No entanto, sua vaidade e prazer estavam postas em ser lido. Portanto, creio que assim honro também sua memória.
Não vou falar da qualidade de seus textos, deixo isso para vocês.
Coloco aqui uma pequena poesia do livro como aperitivo.
venho aqui com mais um Visão Periférica. Trago um poeta que já apresentei anteriormente (clique aqui para ler o Visão Periférica n 2) e, como já tinha prometido, disponibilizo o livro O ROSTO de Guerra de Holanda integralmente para baixar gratuitamente. A versão digitalizada não está lá essas coisas, o livrinho que tenho é bem velho e o scanner não é dos melhores, mesmo assim, dá pra ler tranquilo.
Segundo seu filho, Lula, Guerra de Holanda não estava preocupado com o lucro de seus livros, inclusive recebeu pouquíssimo por sua produção. No entanto, sua vaidade e prazer estavam postas em ser lido. Portanto, creio que assim honro também sua memória.
Não vou falar da qualidade de seus textos, deixo isso para vocês.
Coloco aqui uma pequena poesia do livro como aperitivo.
O Baterista do Cabaré
(Guerra de Holanda)
Seu Alexandre, pastor protestante,
É pai de família exemplar
De dia, ensina o evangelho
De noite ele vive a tocar
E ele, toca de olhos fechados
Absorto nos mundos de Deus
Como as estrelas perdidas nos céus
Não fosse a família crescendo,
Seu Alexandre, o bom baterista,
Não ia ser músico daquele lugar
Ele tem um milhão de irmãos
Descrentes, transviados, pagãos
Que precisa salvar! E precisa salvar!
As mulheres de rostos cansados
Serpentes de lascivos coleios
Mostram os braços, os corpos, os seios...
Mas seu Alexandre de olhos fechados!
E ele nem ouve a música que sai
De suas mãos tão grandes, tão puras
Nem vê nos homens que bebem no gin,
No vinho, desengano, amarguras.
Seu Alexandre, pastor protestante,
É pai de família exemplar
De dia ele ensina o evangelho
De noite, ele vive a tocar.
domingo, 22 de janeiro de 2012
Visão Periférica: CONCRETO E EU
Ontem, após o término de meu expediente, enquanto aguardava o ônibus na Rua da Aurora, fui atacado por um poste. Estava distraído, observando os pescadores retirarem seus peixes do leito podre do Capibaribe e, de seu mais alto sarcasmo, sem mais nem menos, o poste resolveu me nocautear e abrir meu supercílio. Seu murro-concreto cortou, rasgou feio.

Por pura covardia e com o único intuito de fugir daquele lugar infernal, tratei de subir no primeiro ônibus que apareceu.
O centro da cidade é bem complexo. O barulho é constante, a poluição, a insegurança, a inoperância da polícia combinados ao ir e vir constante das motos que zigzagueiam costurando os carros e ônibus numa imensa colcha de retalhos caoticamente tão comum aos centros urbanos latino-americanos é a voz de todo o dia. Obviamente, não é um ambiente que favoreça a tranquilidade e a paz de espírito. Todos gritam, xingam, brigam ou matam-se nas ruas. O estresse não poupa ninguém, nem avenidas, nem prédios, nem postes.
Não é a primeira vez que algo assim me acontece. No ano passado, enquanto voltava de uma palestra e conversava com amigos, o piso do estacionamento da universidade passou-me uma rasteira e ainda me deu uns dois ou três chutes. Dois amigos me socorreram, perguntaram se eu estava bem, porém nada fizeram para impedir o ataque. Não os culpo, realmente é difícil prever algo assim. A ferocidade do ataque, porém, rasgou-me uma bela camisa da qual gostava muito, machuquei os braços tentando me defender e, ainda, marquei minha boca com uma cicatriz que carrego até hoje. Levei três pontos.
Entrei no ônibus ensanguentado, achando que seria a última vez que algo parecido me aconteceria. Me enganei.
Alguns amigos também me contaram algumas coisas similares, só que naquele tom de segredo, meio cerimonial, com um certo receio de estarem enlouquecendo. Eu, diferentemente, conto-lhes tranquilo, pois para mim a loucura é o menor dos males, já que não pode ser medida numa escala quantitativa real, como litros, quilos ou metros. Alguém, portanto, só pode ser um pouco ou muito doido, sendo isso um critério bastante subjetivo. O poste, por outro lado, tinha bem uns cinco metros e para lá de uma tonelada de puro aço e cimento e agiu com uma absurda covardia frente a minha baixa estatura.
Preocupa-me muito esses ataques cada vez mais constantes que os objetos nos fazem. Já não bastaria estar preocupado com as contas atrasadas, com o ladrão que pode levar todo o meu salário que acabei de sacar no banco, com a briga que tive com a mulher ou mesmo com a torração de saco no trabalho, a Urbe decide brindar-me com uma preocupação a mais: ela própria.

Preciso andar menos distraído. A cidade ri de meu desleixo comigo mesmo e de minha contemplação. É muito complicado conciliar todo esse caos interno tão evidente com o externo, e a Urbe entende isso muito bem. Sabe, só de me olhar, quais são minhas fraquezas e inconsequências e se aproveita, sem nenhum pudor.
quarta-feira, 14 de dezembro de 2011
Sabe o Sabina? (VISÃO PERIFÉRICA)
Hoje, nesse espaço de seus dias que por vocês me foi gentilmente cedido, trago um cantor pouco conhecido do grande público brasileiro, mas que já é consagrado, há muito tempo, pelo público “hispano hablante”. O espanhol Joaquín Sabina é conhecido por sua veia poética incontestável e por uma linguagem musical que mistura influências regionais e pessoais com o rock’n’roll, o blues etc.
Os versos de Sabina são densos, porém não sérios. Brinca com as palavras, fala as verdades na cara e, diversas vezes, pode ser considerado brega por parte do público. Mas tudo isto sem medo.

Sabina não esconde seu gosto por dinheiro, mulheres, bebida e drogas. E com todos quatro prazeres teve problemas. No entanto, afirma que atualmente, aos 62 anos, após ter um acidente vascular cerebral e passar alguns anos em depressão: “de las drogas solo siento nostalgia".
Além de ser músico também é autor de 12 livros, incluindo alguns de poesias, que sinto não poder comentar muito por não ter tido acesso ainda.
Disponibilizo aqui um grande sucesso seu: 19 días y 500 noches, que encabeça o álbum homônimo lançado em 1999. A explicação para o título vêm de um fora homérico levado pelo autor e que diz em sua letra: “demorei para esquecê-la 19 dias e 500 noites”. Explica que os dias tristes até passaram rápido, mas à noite é que homem se sente só verdadeiramente.
Bem, vou deixar o falatório de lado para que vocês saquem o som e as letras por conta própria. Ponho abaixo também a tradução. Mais informações em seu site oficial: www.jsabina.com ou deem-se o trabalho de buscar no Google!
19 Días y 500 Noches Lo nuestro duró lo que duran dos peces de hielo en un güisqui on the rocks, en vez de fingir, o estrellarme una copa de celos, le dio por reír. De pronto me vi, como un perro de nadie, ladrando, a las puertas del cielo. Me dejó un neceser con agravios, la miel en los labios y escarcha en el pelo. Tenían razón mis amantes en eso de que, antes, el malo era yo, con una excepción: esta vez, yo quería quererla querer y ella no. Así que se fue, me dejó el corazón en los huesos y yo de rodillas. Desde el taxi, y, haciendo un exceso, me tiró dos besos... uno por mejilla. Y regresé a la maldición del cajón sin su ropa, a la perdición de los bares de copas, a las cenicientas de saldo y esquina, y, por esas ventas del fino Laina, pagando las cuentas de gente sin alma que pierde la calma con la cocaína, volviéndome loco, derrochando la bolsa y la vida la fui, poco a poco, dando por perdida. Y eso que yo, paro no agobiar con flores a María, para no asediarla con mi antología de sábanas frías y alcobas vacías, para no comprarla con bisutería, ni ser el fantoche que va, en romería, con la cofradía del Santo Reproche, tanto la quería, que, tardé, en aprender a olvidarla, diecinueve días y quinientas noches. Dijo hola y adiós, y, el portazo, sonó como un signo de interrogación, sospecho que, así, se vengaba, a través del olvido, Cupido de mi. No pido perdón, ¿para qué? si me va a perdonar porque ya no le importa... siempre tuvo la frente muy alta, la lengua muy larga y la falda muy corta. Me abandonó, como se abandonan los zapatos viejos, destrozó el cristal de mis gafas de lejos, sacó del espejo su vivo retrato, y, fui, tan torero, por los callejones del juego y el vino, que, ayer, el portero, me echó del casino de Torrelodones. Qué pena tan grande, negaría el Santo Sacramento, en el mismo momento que ella me lo mande. Y eso que yo, paro no agobiar con flores a María, para no asediarla con mi antología de sábanas frías y alcobas vacías, para no comprarla con bisutería, ni ser el fantoche que va, en romería, con la cofradía del Santo Reproche, tanto la quería, que, tardé, en aprender a olvidarla, diecinueve días y quinientas noches. Y regresé... | 19 Dias e 500 Noites O nosso durou O que duram dois peixes de gelo Em um uísque on the rocks, Em vez de fingir, Ou estalar-me uma taça de ciúme, começou a rir. De repente, me vi Como um cão de ninguém Latindo, às portas do céu. Me deixou uma nécessaire com queixas, O mel nos lábios E geada no cabelo. Tinham razão minhas amantes nisso de que, antes o mau era eu, Com uma exceção: Esta vez Eu queria querê-la querer E ela não. Então ela se foi Me deixou o coração Nos ossos E eu de joelhos. Desde o táxi, E fazendo um excesso Me jogou dois beijos ... Um por bochecha. E voltei À maldição Da gaveta sem suas roupas, À perdição De bares de taças, Às cinderelas De saldo e esquina E por essas vendas Do fino Laina, Pagando as contas De gente sem alma Que perde a calma Com a cocaína, Ficando louco, Desperdiçando A carteira e a vida Fui, pouco a pouco, Dando-a por perdida. E isso porque eu, Para não sobrecarregar com Flores a Maria Para não assediá-la Com minha antologia De lençóis frios E quartos vazios Para não comprá-la Com bijuterias, Nem ser o fantoche Que vai em romaria, Com a confraria da Santa Repreensão, Tanto a queria, que demorei em aprender a esquecê-la, dezenove dias E quinhentas noites. Ela disse: Olá e adeus E o bater a porta tocou Como um ponto de interrogação Suspeito que, assim, Vingava-se, por meio do esquecimento, Cupido de mim. Eu não me desculpo, Para quê? se você vai me perdoar porque já não lhe importa ... Sempre teve a testa muito alta, A língua muito longa E a saia muito curta. Me abandonou Como se abandonam Os sapatos velhos, Destroçou a lente Dos meus óculos para longe Tirou do espelho Seu vivo retrato, E fui, tão toureiro, Pelos becos do jogo e do vinho Que, ontem, o porteiro, Me expulsou do cassino De Torrelodones. Que pena tão grande, Negaria o Santo Sacramento, No mesmo momento Que ela me mande. E isso porque eu, Para não sobrecarregar com Flores a Maria Para não assediá-la Com minha antologia De lençóis frios E quartos vazios Para não comprá-la Com bijuterias, Nem ser o fantoche Que vai em peregrinação, Com a fraternidade da Santa Repreensão, Tanto a queria, Que demorei em aprender A esquecê-la, dezenove dias E quinhentas noites. E regressei... |
domingo, 25 de setembro de 2011
VISÃO PERIFÉRICA (N 3) – ENTRE HERÓIS, QUADRINHOS E OUTROS PENSAMENTOS
Hoje, optei por falar de algo um pouco diferente e que não sei se terá repercussão no bolg, pois alguns aqui podem ser cabeça demais para um papo tão nerd. Mesmo assim, peço licença aos preconceitos de alguns e agradeço a abertura de outros, para falar de um tema que me muito agrada: quadrinhos.
Não sou um profundo conhecedor de quadrinhos, nem mesmo um leitor compulsivo, mas conheço alguns que fizeram a diferença na minha forma de enxergar essa arte. Como a maioria das pessoas da minha geração, lia muito gibi na infância, principalmente do Menino Maluquinho, que ainda gosto. Na adolescência, porém, as meninas ficaram muito mais interessantes do que as histórias do Ziraldo e me afastei desta leitura sem nem me dar conta. Quando cresci um pouco mais, já depois dos vinte, me reencontrei através da internet com os quadrinhos, mas desta vez com algo destinado para um público um pouco mais velho.
Poderia falar de muitas histórias interessantes que pude acompanhar, hoje, porém, quero falar de meu herói favorito, que não é o Super-Homem, nem o Batman, nem o Wolverine. O melhor super-herói para mim foi publicado pela DC COMICS e se chama Homem-Animal. Fora os leitores mais assíduos e fãs de quadrinhos, poucos têm o conhecimento dessa obra-prima de Grant Morrison.
O personagem foi lançado originalmente em 65, mas durante a década de 60 e 70 foi relegado a um segundo plano e não obteve sucesso. Porém quando Morrison assume, na década de 80, o personagem passa a ter uma maior aceitação do público que se surpreende a cada nova edição.
O herói é Buddy Baker e ao contrário do clichê, não possui identidade secreta. Todos sabem quem ele é, quem é sua família, onde mora e sabem que ser um herói é o seu ganha-pão – isso mesmo, ele recebe um salário pago pela Liga da Justiça, como um membro secundário. Através de um contato com uma nave alienígena Buddy adquiriu o incrível poder de copiar os poderes dos animais que ele entrar em contato. Quando está perto de uma águia, por exemplo, pode voar ou ter sua visão; perto de uma formiga passa a ter força o suficiente para carregar vinte vezes o seu próprio peso e, assim por diante.
No entanto, fora as coisas que toda revista de super-heróis tem que ter, como super-vilões e diálogos em meio a batalhas, a história de Buddy Baker vai muito além do óbvio. (A próxima frase pode ser um spoiler imperdoável, por isso se você já quer ler a revista não leia o que escrevo daqui pra baixo). Ele passa por um processo de busca espiritual, tentando entender-se, no qual é levado a um xamã, toma peyote, tem uma viagem astral e encontra-se com seu criador: Grant Marrison (e não deus).
O Homem-Animal trata do homem por trás desse herói: o homem, animal de fato, humano, apesar de tudo, falível e em busca de algo maior para dar sentido a sua vida. Por conta disto, recomendo a leitura.
O Vertigem HQ disponibiliza não só suas histórias como muitas outras que compensam dar uma olhada. Disponibilizo aqui o link do Vertigem HQ para baixar todas as histórias do Homem Animal. Lembro, porém, que, pelo menos para mim, a parte interessante é a escrita por Grant Morrison, que vai da 1ª edição até a 26ª.
sábado, 17 de setembro de 2011
VISÃO PERIFÉRICA (N 2) – GUERRA DE HOLANDA
Alguém aí já ouviu falar de Guerra de Holanda?
Guerra de Holanda foi um jornalista, poeta e cronista nascido em 1918 em Santana do Ipanema (AL), mas radicado em Pernambuco desde sua mais tenra infância. Publicou em diversos jornais pernambucanos e escrevia duas crônicas diárias durante muitos anos, uma chamada Política é isso mesmo! e a sua mais popular Bacia de Pilatos, que lhe rendeu um livro póstumo de título homônimo.
É interessante notar que Guerra de Holanda era uma figura muito conhecida até a sua morte em 1967, seus textos muito lidos tanto pela população em geral, como pelos intelectuais pernambucanos. Circulava com desenvoltura entre os poetas e escritores da época, pelos quais era querido e admirado. Tinha entre seus amigos pessoais Mauro Mota (a quem dedica seu segundo livro), Nilo Pereira e, segundo seu filho, o próprio Gilberto Freyre chegou a frequentar a sua casa (mesmo não sendo dos mais chegados).
No campo da crônica, Nilo Pereira chama-o de “Nosso Rubem Braga” no prefácio de seu livro póstumo. Tantos outros, porém, trocavam ideias e elogiavam a sua forma concisa e poética de relatar o cotidiano.
O grande Manuel Bandeira, que dispensa qualquer apresentação, teceu críticas sobre o seu primeiro livro, principalmente a poesia “Prece” que muito lhe agradava.
Em toda sua vida lançou apenas dois livros: Audácia e O Rosto. Quando lançou Audácia tinha apenas 20 anos. Já O Rosto, lançado dez anos depois em 1948, é um livro mais maduro que foi muito bem recebido pela crítica da época.
Você pode estar se perguntando: por que estou falando tanto dessa figura que você provavelmente nunca ouviu falar?
Já explico.
Folheando no final de semana passado alguns livros antigos, encontrei um especial, encadernado em uma capa azul muito delicada. Quando abri a primeira página encontrei a inconfundível letra trêmula de meu já falecido avô. Foi o primeiro livro de poesias que ganhei, era o Audácia, a dedicatória datava de 1992, quando eu tinha apenas sete anos e havia saído recentemente da alfabetização.
Vovô João havia me dado uma cópia do livro do seu irmão Augusto, que para mim sempre foi o tio Gusto, que nunca conheci pessoalmente, só por fotografias, verso e prosa. Daí, provavelmente, surgiu o meu gosto pela poesia, vendo aqueles versos despretensiosos, diretos, repletos de sentimentos pueris e cheios de humor.
Obviamente, tenho uma relação mais que consanguínea com o poeta, o que me faz altamente suspeito para falar dele. Mesmo sabendo que tudo o que escreva aqui vocês poderão julgar como uma tentativa de que eu apenas queira buscar uma forma luzir meus “antepassados poetas”, tal qual faziam os candidatos a bispos medievais que inventavam parentescos com santos, ou criavam milagres dizendo que tinham sido feitos por seus antepassados para que se tornassem mais dignos do cargo eclesiástico, decidi publicar esse textinho.
Deixando de lado quaisquer que sejam minhas intenções com essa publicação, peço que observem sua poesia e, se possível, comentem.
O que me parece interessante é: como alguém tão bem criticado, elogiado, lido e "bem relacionado" em sua época entrou num total ostracismo, de forma que pouquíssimos conhecem sua literatura?
É uma pergunta que ainda não tenho resposta. Não sei se terei. Talvez seja o mais normal. Mesmo assim, é uma pena.
Sem querer prolongar mais esse meu texto, pois sei que poucos terão paciência de chegar até o fim dele, deixo vocês (os mais corajosos e pacientes) com os versos do poeta Guerra de Holanda.
Algumas poesias de Audácia
VÍCIOS
Há os que bebem; há os que fumam;
Há os que fazem coisas bem piores...
Eu faço poemas!
ROMANTISMO
Depois que te abandonei, Moêma,
senti o desejo iscariote de ser Judas
para morrer enforcado
nas tranças de teus cabelos!...
MUNDO
O homem triste entrou no Casino,
pediu champanhe
e bebeu,
bebeu...
Dançou com sete mulheres
que estavam lá, para alegra-lo.
Depois do vigésimo terceiro “fox”,
sentou-se à mesa,
bateu palmas, chamando o garçom:
“– Garçom, traga-me a Felicidade!”
O rapaz sorriu:
“– Aqui não há felicidade!”
A poesia que dá nome ao livro O Rosto.
O Rosto
O rosto de Zulmira é mais bonito
Do que uma Missa Pontifical
Com incenso, turíbulos e mitras
E as outras pompas do ritual
O rosto de Zulmira é mais bonito
Muito mais bonito que o mar
Com uma jangada branca, toda branca,
De velas, pandas, a navegar
O rosto de Zulmira é mais bonito
Do que o filho primogênito
O que veio primeiro, na dor primeira,
A beleza maior, mais verdadeira
O rosto de Zulmira é tão bonito
Que eu esqueço que sou homem
E fico a olhá-lo de olhos quedos
Como criança que se admira
Vendo uma vitrina de brinquedos
O rosto de Zulmira é tão bonito
Como nenhum outro rosto de mulher
É alegria sensual que se deseja!
É a paisagem humana que se quer!
O rosto de Zulmira é tão bonito
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