Viajantes Interplanetários

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terça-feira, 26 de abril de 2011

Coluna Invertebrada ou Coluna sem Vértebras

Por Marcantonio.

Ismael Néry

“(...) Não tenho sido na vida senão um grande ator sem vocação. Ator desconhecido, sem palco, sem cenário e sem palmas.” O autor destas palavras foi uma das mais originais personalidades e um dos grandes artistas do modernismo brasileiro. Ismael Néry era pintor, desenhista, ilustrador, cenógrafo, pensador e poeta não publicado em vida. É considerado o verdadeiro introdutor do surrealismo entre nós. Nascido no Pará em 1900, veio aos dezessete anos para o Rio de Janeiro, onde cursou a Escola de Belas Artes; dois anos depois estava na França, complementando seus estudos. Em 1922 casa-se com a poeta Adalgisa Néry. 

Trabalhando num cargo público como desenhista para se suatentar, conhece o poeta Murilo Mendes que será seu grande amigo e divulgador da sua obra. Seu estilo nesses anos sofre influência do expressionismo e do cubismo de Picasso. Mas, em 27, realiza nova viagem à Europa, faz amizade com Chagall e André Breton e retorna ao Brasil para realizar suas obras mais importantes, de cunho surrealista. Mas, tuberculoso, morre aos 33 anos. Apesar dos esforços de Murilo Mendes (responsável pela conservação de boa parte dos trabalhos do amigo), Néry permaneceu praticamente ignorado até a década de 60, quando a exposição de suas pinturas na 8ª Bienal de São Paulo reacendeu a curiosidade por sua obra, considerada desde então das mais importantes do modernismo.

Particularmente, é dos modernistas brasileiros aquele de que mais gosto, ao lado de Flávio Carvalho e Cícero Dias. É sem dúvida o mais universal, jamais se prendendo a qualquer tema de exotismo regionalista. Seu assunto é o homem, suas dúvidas, contradições e anseios metafísicos, sua ânsia de transcender os limites físicos e sociais.

Quanto ao poeta Ismael Néry, permaneceu inédito por anos. Após a morte dele, Murilo Mendes fez publicar alguns de seus poemas em revistas. E em 1946, Manuel Bandeira incluiu alguns deles na Antologia de Poetas Brasileiros Bissextos Contemporâneos.

Abaixo, dois poemas de Néry escritos já no final de sua vida:

CONFISSÃO

Não quero ser Deus por orgulho.
Eu tenho esta grande diferença de Satã.
Quero ser Deus por necessidade, por vocação.
Não me conformo nem com o espaço nem com o tempo,
Nem com o limite de coisa alguma.
Tenho fome e sede de tudo,
Implacável
Crescente.
Talvez seja esta a minha diferença de Deus
Que tem fome e sede de mim,
Implacável,
Crescente,
Eterna
— De mim que me desprezo e me acredito um nada.




EU


Eu sou a tangência de duas formas opostas e justapostas
Eu sou o que não existe entre o que existe.
Eu sou tudo sem ser coisa alguma.
Eu sou o amor entre os esposos,
Eu sou o marido e a mulher,
Eu sou a unidade infinita
Eu sou um deus com princípio
Eu sou poeta!


Eu tenho raiva de ter nascido eu,
Mas eu só gosto de mim e de quem gosta de mim.
O mundo sem mim acabaria inútil.
Eu sou o sucessor do poeta Jesus Cristo
Encarregado dos sentidos do universo.
Eu sou o poeta Ismael Nery
Que às vezes não gosta de si.


Eu sou o profeta anônimo.
Eu sou os olhos dos cegos.
Eu sou o ouvido dos surdos.
Eu sou a língua dos mudos.
Eu sou o profeta desconhecido, cego, surdo e mudo
Quase como todo o mundo.

Para finalizar, algumas imagens da obra do pintor:

Auto-retrato com Adalgisa, óleo, sem data

Casal, aquarela, sem data

Família, óleo, 1924

Mulher Sentada com Ramo de Flores, óleo, 1927

O Encontro, óleo, 1928

Visão Interna - Agonia, óleo, 1931

Morte de Ismael Néry, aquarela, 1932



Para ver mais obras de Ismael Néry:
http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=artistas_obras&cd_verbete=900&cd_idioma=28555

terça-feira, 5 de abril de 2011

Coluna Invertebrada ou Coluna sem Vértebras

Por Marcantonio


Chagall  (1885-1987)
Alguém já disse que um artista é antes de tudo um artista, um tipo geral de sensibilidade que só secundariamente se expressa através desse ou daquele meio. Assim, faltaria pouco, por exemplo, para que um poeta fosse um músico, ou um músico um artista visual, considerando, claro, a especificidade de cada linguagem ou aptidão que por dada razão é mais desenvolvida do que outra.

Acho essa idéia interessante. E ela se liga à outra, com que também simpatizo, que é própria, dizem, do romantismo alemão, segundo a qual a poesia seria a base, ou essência, de todas as artes: para além da poesia propriamente, linguagem específica, verbal, haveria também um sentido amplo do poético como substrato e objetivo de todas as formas artísticas. Faz sentido?

Bem, ao menos isso explica o porquê de chamarmos de poéticos uma determinada pintura, ou um filme, ou a forma total de uma narrativa, ou um vídeo de arte contemporânea. E explica também como um mesmo artista transita por diferentes linguagens sem, digamos, entrar em contradição consigo mesmo. Aliás, um indício interessante desse plano comum é a própria forma com que utilizamos a palavra “imagem”, a princípio algo que consideramos de natureza visual, mas que transpomos (como capacidade de figurar) para a linguagem verbal e até para a própria música.

Gostaria, então, de usar de início o espaço desta coluna para falar desses cruzamentos de linguagens; de artistas que se expressaram tanto através dos meios plásticos e visuais, como também pela poesia propriamente dita. E não foram poucos aqueles que o fizeram, e ainda fazem, sobretudo se pensarmos no papel que a palavra passou a desempenhar na arte contemporânea.

Comecemos por um cara que é classificado unanimemente como um pintor-poeta: Chagall. Típico artista de visão individual cujo trabalho não pode ser classificado como pertencente a nenhuma escola específica; intuitivo, em nada intelectual, tinha uma imaginação incomum e dava livre vazão à sua fantasia quase sempre movida pela memória da infância, pela nostalgia de sua terra natal, por um humanismo terno. Não se encontra nele uma imagem mórbida sequer, embora tenha adotado o tema sombrio do crucificado durante o período de ascensão do Nazismo, tema que logo se transformou no da Ressurreição. Seus quadros são imersos numa atmosfera de sonho. Quem nunca viu uma de suas vacas voadoras, ou aqueles casais de amantes que flutuam acima da cidade? Cabras e violinistas alados, anjos, flores, peixes, pássaros, o circo, amantes que se fundem, tudo tratado com uma especial ternura.

Chagall era grande leitor de poetas, e também escrevia, tendo redigido uma autobiografia. Entre os poemas traduzidos por Manuel Bandeira, há um do pintor russo que reproduzo abaixo:

Só é meu
o país que trago dentro da alma.
Entro nele sem passaporte
como em minha casa.
Ele vê a minha tristeza
e a minha solidão.
Me acalanta.
Me cobre com uma pedra perfumada.
Dentro de mim florescem jardins.
Minhas flores são inventadas.
As ruas me pertencem
mas não há casas nas ruas.
As casas foram destruídas desde a minha infância.
Os seus habitantes vagueiam no espaço
à procura de um lar.
Instalam-se em minha alma.
Eis por que sorrio
quando mal brilha o meu sol.
Ou choro
como uma chuva leve
na noite.
Houve tempo em que eu tinha duas cabeças.
Houve tempo em que essas duas caras
se cobriam de um orvalho amoroso.
Se fundiam como o perfume de uma rosa.
Hoje em dia me parece
que até quando recuo
estou avançando
para uma alta portada
atrás da qual se estendem altas muralhas
onde dormem trovões extintos
e relâmpagos partidos.
Só é meu
o mundo que trago dentro da alma.

Bem, vemos que aí ele assume sua  condição de nômade que leva dentro de si o próprio mundo, um mundo comovente de imagens mais próximas do coração do que da cabeça.

Um pouco da poesia visual de Chagall:



E um vídeo com uma das daz músicas de um curioso Tributo Musical a Marc Chagall composta por Zé de Riba e Wolney de Assis.



Abraços e até a próxima!