Viajantes Interplanetários

terça-feira, 5 de abril de 2011

Coluna Invertebrada ou Coluna sem Vértebras

Por Marcantonio


Chagall  (1885-1987)
Alguém já disse que um artista é antes de tudo um artista, um tipo geral de sensibilidade que só secundariamente se expressa através desse ou daquele meio. Assim, faltaria pouco, por exemplo, para que um poeta fosse um músico, ou um músico um artista visual, considerando, claro, a especificidade de cada linguagem ou aptidão que por dada razão é mais desenvolvida do que outra.

Acho essa idéia interessante. E ela se liga à outra, com que também simpatizo, que é própria, dizem, do romantismo alemão, segundo a qual a poesia seria a base, ou essência, de todas as artes: para além da poesia propriamente, linguagem específica, verbal, haveria também um sentido amplo do poético como substrato e objetivo de todas as formas artísticas. Faz sentido?

Bem, ao menos isso explica o porquê de chamarmos de poéticos uma determinada pintura, ou um filme, ou a forma total de uma narrativa, ou um vídeo de arte contemporânea. E explica também como um mesmo artista transita por diferentes linguagens sem, digamos, entrar em contradição consigo mesmo. Aliás, um indício interessante desse plano comum é a própria forma com que utilizamos a palavra “imagem”, a princípio algo que consideramos de natureza visual, mas que transpomos (como capacidade de figurar) para a linguagem verbal e até para a própria música.

Gostaria, então, de usar de início o espaço desta coluna para falar desses cruzamentos de linguagens; de artistas que se expressaram tanto através dos meios plásticos e visuais, como também pela poesia propriamente dita. E não foram poucos aqueles que o fizeram, e ainda fazem, sobretudo se pensarmos no papel que a palavra passou a desempenhar na arte contemporânea.

Comecemos por um cara que é classificado unanimemente como um pintor-poeta: Chagall. Típico artista de visão individual cujo trabalho não pode ser classificado como pertencente a nenhuma escola específica; intuitivo, em nada intelectual, tinha uma imaginação incomum e dava livre vazão à sua fantasia quase sempre movida pela memória da infância, pela nostalgia de sua terra natal, por um humanismo terno. Não se encontra nele uma imagem mórbida sequer, embora tenha adotado o tema sombrio do crucificado durante o período de ascensão do Nazismo, tema que logo se transformou no da Ressurreição. Seus quadros são imersos numa atmosfera de sonho. Quem nunca viu uma de suas vacas voadoras, ou aqueles casais de amantes que flutuam acima da cidade? Cabras e violinistas alados, anjos, flores, peixes, pássaros, o circo, amantes que se fundem, tudo tratado com uma especial ternura.

Chagall era grande leitor de poetas, e também escrevia, tendo redigido uma autobiografia. Entre os poemas traduzidos por Manuel Bandeira, há um do pintor russo que reproduzo abaixo:

Só é meu
o país que trago dentro da alma.
Entro nele sem passaporte
como em minha casa.
Ele vê a minha tristeza
e a minha solidão.
Me acalanta.
Me cobre com uma pedra perfumada.
Dentro de mim florescem jardins.
Minhas flores são inventadas.
As ruas me pertencem
mas não há casas nas ruas.
As casas foram destruídas desde a minha infância.
Os seus habitantes vagueiam no espaço
à procura de um lar.
Instalam-se em minha alma.
Eis por que sorrio
quando mal brilha o meu sol.
Ou choro
como uma chuva leve
na noite.
Houve tempo em que eu tinha duas cabeças.
Houve tempo em que essas duas caras
se cobriam de um orvalho amoroso.
Se fundiam como o perfume de uma rosa.
Hoje em dia me parece
que até quando recuo
estou avançando
para uma alta portada
atrás da qual se estendem altas muralhas
onde dormem trovões extintos
e relâmpagos partidos.
Só é meu
o mundo que trago dentro da alma.

Bem, vemos que aí ele assume sua  condição de nômade que leva dentro de si o próprio mundo, um mundo comovente de imagens mais próximas do coração do que da cabeça.

Um pouco da poesia visual de Chagall:



E um vídeo com uma das daz músicas de um curioso Tributo Musical a Marc Chagall composta por Zé de Riba e Wolney de Assis.



Abraços e até a próxima!

2 comentários:

  1. Me sinto mais cultural agora =]
    Bandeira traduzindo alemão, poxa! tá aí uma coisa que eu não sabia do grande Bandeira. Bela tradução.

    Sou um cara q acredita que há poesia em tudo - como vc comenta na coluna- ver poesia nas coisas desse universo e nos paralelos é coisa para poucos.

    ResponderExcluir
  2. não sabia que chagall escrevia embora suas pinturas sejam poemas da mais alta grandeza.
    vivendo e aprendendo com os marcianos...

    beijo antenado!

    (a coluna é invertebrada e o escritor bem articulado)

    ResponderExcluir