HARPAS SELVAGENS
HARPA XXXII
(Sousândrade)
Dos rubros flancos do redondo oceano
Com suas asas de luz prendendo a terra
O sol eu vi nascer, jovem formoso
Desordenando pelos ombros de ouro
A perfumada luminosa coma,
Nas faces de um calor que amor acende
Sorriso de coral deixava errante.
Em torno de mim não tragas os teus raios,
Suspende, sol de fogo! tu, que outrora
Em cândidas canções eu te saudava
Nesta hora d’esperança, ergue-te e passa
Sem ouvir minha lira. Quando infante
Nos pés do laranjal adormecido,
Orvalhado das flores que choviam
Cheirosas dentre o ramo e a bela fruta,
Na terra de meus pais eu despertava,
Minhas irmãs sorrindo, e o canto e aromas,
E o sussurrar da rúbida mangueira
Eram teus raios que primeiro vinham
Roçar-me as cordas do alaúde brando
Nos meus joelhos tímidos vagindo.
O GUESA
CANTO TERCEIRO
(Sousândrade)
As balseiras na luz resplandeciam –
oh! que formoso dia de verão!
Dragão dos mares, – na asa lhe rugiam
Vagas, no bojo indômito vulcão!
Sombrio, no convés, o Guesa errante
De um para outro lado passeava
Mudo, inquieto, rápido, inconstante,
E em desalinho o manto que trajava.
A fronte mais que nunca aflita, branca
E pálida, os cabelos em desordem,
Qual o que sonhos alta noite espanca,
“Acordem, olhos meus, dizia, acordem!”
E de través, espavorido olhando
Com olhos chamejantes da loucura,
Propendia para as bordas, se alegrando
Ante a espuma que rindo-se murmura:
Sorrindo, qual quem da onda cristalina
Pressentia surgirem louras filhas;
Fitando olhos no sol, que já s’inclina,
E rindo, rindo ao perpassar das ilhas.
– Está ele assombrado?... Porém, certo
Dentro lhe idéia vária tumultua:
Fala de aparições que há no deserto,
Sobre as lagoas ao clarão da lua.
Imagens do ar, suaves, flutuantes,
Ou deliradas, do alcantil sonoro,
Cria nossa alma; imagens arrogantes,
Ou qual aquela, que há de riso e choro:
Uma imagem fatal (para o ocidente,
Para os campos formosos d’áureas gem
O sol, cingida a fronte de diademas,
índio e belo atravessa lentamente):
Estrela de carvão, astro apagado
Prende-se mal seguro, vivo e cego,
Na abóbada dos céus, – negro morcego
Estende as asas no ar equilibrado.
O GUESA
DO CANTO SEXTO
(Sousândrade)
“Longa estrada do Suna – doces horas!
Qual as migalhas do banquete etéreo,
Aos astros, com malédico impropério
Varrem dos céus as servas, as auroras.
“Se, despedira ao sol de Guanabara
Co’a a saudade estival do quente clima;
Ora, a alta noite estava ao longe em cima,
Qual o sagrado pensamento estara.
“E presenciei a noite: os ventos fundos
Rebramiam qual gênios da montanha;
as estrelas esvoavam, e da sanha
Sidérea delas claro – umbrava o mundo.
“Parou o sol fronteiro, que eu subia
Nestes píncaros do ar por mil bizarras
Ermas aspas, titânea fantasia!
Doce alumiadas das manhãs às barras –
“Oh, quanta luz! Nos vales jaz mesquinha
A cidade, negra harpa, que recorda
Criações de Caim: jardins e vinhas;
Ruas sonoras são-lhe das harpa as cordas.
“Do bosque as virações, a ave das flores,
Sonolentas erguiam-se; as ramagens
Brandas s’embalaçavam nas voragens
Tranças no ombro formoso; em resplendores,
“Do penhasco estalavam, em torrentes
Que iam ‘strondar do abismo pelas fráguas,
Vivos diamantes rubros e orientes
Do desespero em que espedaçavam águas!
“Ainda vejo, tão bem! co’a doce pena
D’alma dolente à que nos deixa a parte:
Todos saudavam-me, a iaiá morena
Da porta o olhar e linda e meiga e mártir.
“Vagavam, longas pausas, longamente
Vozes, recomeçando, concertando,
E as alavancas, fúnebres vibrando
Noturnas, nas pedreiras e cadentes;
“Dos escravos as vozes, tristes, mestas,
Quão desgraçadas, Deus! quanto saudosas
Às calmas tropicais, do dia às sestas,
Da sebe ao aroma, ao s’encarnar das rosas,
“Aos brandos céus, aos tão cerúleos mares,
Quais nunca eu tinha visto! Oh, natureza,
Quanto ocultavas tu sem amostrares,
De luz, de sons e d’íntima beleza!
“Em seu dia final quanto é-se humano
D’alma sentindo as meigas relações
Que há entre os céus e o homem soberano,
Entre esta amante terra e os corações!
“Bendiz-se ao mundo, com piedoso encanto
Conciliador d’esp’rança já perdida,
E a esta misérrima, a esta espuma-vida,
Em qual abraço que estreitou-se em pranto.”
Do Guesa o coração fora humilhado
Ao cruel desencanto de um delírio...
Dos ecos vão, dos vales o martírio,
Longas ondulações – vaga o passado.
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