Viajantes Interplanetários

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Dois palitos


Não tenho memória para a filosofia, nem para a história. Minha memória parece uma caixa de fósforo com os últimos dois palitos. Leio, releio, e só com sorte consigo usar esse conteúdo a tempo de ele não se perder. Para onde vão os livros que li? Para onde foi o curso sobre Husserl que fiz exclamativamente, embriagada por cada parágrafo de sua investigação? Lembro da voz do professor, o uruguaio Mário Porta, lembro de seu terno de veludo, da pasta que poderia ser de um médico — de couro, preta, gorda de papéis —, lembro de ele não ter paciência com minhas perguntas, achava sempre que eu fosse chegar na existência de Deus, qualquer menção ao fundamento estaria ainda impura por essa premissa.

Eu queria era justamente afastar esse personagem, queria que ele mesmo o tirasse para meu deslumbre e descanso. De Husserl a Deus vai um mundo, mas é preciso se afastar do tema da aula para entender onde estão inscritas as perguntas de um autor, indo para trás e para os lados até chegar às perguntas fundamentais. Cada professor faz esse percurso de um jeito, no caso do Mário Porta, tudo se mostrava em espiral. Eu delirava. Foi botar Deus de lado e no lugar da causa veio uma cachoeira, sempre a água nova pela primeira vez. Isso daria um quadro de restaurante chinês, mas eu estava diante da exposição de pensamentos profundos. Lembro de mais nada. O assustador: isso faz pouco tempo.

Já percebi que há reservatórios e reservatórios. Alguns mais acessíveis, outros não e esses são interessantes — pois não sei o que há nele, mas sei dele, sei do curso do Husserl, mas não sei do conteúdo exato e por extenso. No caso do reservatório acessível, tampouco posso contar com a exatidão. Lamento demais, porque no ato da absorção, uma orquestra acontece na minha mente, mas sou incapaz de mantê-la. Uma pena! Queria tanto poder ter a certeza de que entendi.

Faz tempo que não vou à cartomante, sempre fui. Toda a confiança é depositada na chegada, na saída escolho uma ou outra frase — tem uma tia sua que vai ficar louca, fixei essa, por exemplo. E ficou mesmo, meses depois, lá no meio da roça em Minas Gerais: a vaca mais velha da minha tia se suicidou, ela mergulhou na água de Furnas e não houve quem conseguisse trazê-la de volta. A cartomante depois explicou que a vaca pegou a loucura da minha tia, para o alívio dos parentes.

Sua tia vai ficar louca. Uma coisa dessa não esqueço, mas todo o livro que achei na biblioteca, aquele livro bomba que estourou meu tímpano, aquele sobre o sonho que Descartes teve antes de escrever seu cogito. O francês foi chacoalhado por um sonho onde um homem lhe mostrava um livro em branco, suou litros, acordou e começou a obra que o fez conhecido. Não confie em mim, isso já pode estar deturpado, incluindo o sonho. Mas o que lembro é só de uma frase, Descartes não era cartesiano quando sonhou.

Do que me serve essa frase sem tudo o que a explica e a dimensiona? Evidente que posso procurar nesse instante os dados no Google, melhor ainda, abrir os livros que estão atrás de mim, inclusive esse da aluna de filosofia que fez uma tese sobre os sonhos de Descartes — pausa, fui buscar o livro. Agora sim, livro em mão, a tese se chama “Sonhos sobre meditações de Descartes” de Luci Buff, está confirmada a frase. Quanto ao sonho, tinha sim um homem desconhecido, mas os livros eram dois, um dicionário e uma antologia de poemas.

Não recuso o conhecimento, desejo esse mel, mas o esquecimento é uma operação mental que não controlei até aqui e não vejo solução a nenhum prazo. Por vezes a ficção é o lugar que resta para pessoas como eu, e há os deuses, os que estão na ficção e tem memória, a memória de um comerciante fenício que sabe a história de cada habitante de cada canto que seu barco alcançou. Para vocês, todo o sal que eu puder oferecer.


Andrea del Fuego
  

Um comentário:

  1. Limerique

    Bem vindo seja o esquecimento
    Que assalta bisonho pensamento
    Que bem aventurança
    Perder toda lembrança
    Viver tudo novo a cada momento.

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