A DOIDA DA CONDE DA BOA VISTA
Sabe
aquelas noites em que você acorda e não consegue mais dormir? Aquela foi uma.
Os sons da madrugada, no centro Recife, são mais intensos do que muita gente
pensa. Ainda mais se você morar na Conde da Boa Vista, no trecho entre a Rua do
Hospício e a Ponte Duarte Coelho.
Há
dois sintomas espalhados pela cidade que parecem se intensificar nesse pequeno,
mas turbulento, pedaço. O abandono pelo poder público e as pessoas que não têm
casas, e fazem das marquises seus abrigos. Cada canto coberto de esquina, cada banca
de revista, cada porta de loja que ofereça condições para uma pousada, lá eles
se instalam com seus alojamentos de papelão. Lá eles instalam seus lugares onde
defecam e urinam sem a menor cerimônia. Lá eles comem, bebem, fumam e fazem
sexo.
Há
mais uma coisa na Conde da Boa Vista que poucos percebem. Seus moradores, por
já terem se acostumado e os passantes por serem, como acabei de dizer,
passantes. Apenas os atentos identificam o odor de fumaça de óleo diesel misturado
com excremento humano. A fumaça, deixada pelos milhares carros e ônibus que
passam todos dias e o excremento, resultado dos albergues volantes de todas as
noites.
Essas
pessoas, dos albergues volantes, parece que não dormem. Ou então se revezam em
vigília. Sempre se escuta alguém falando, reclamando, xingando, ou,
simplesmente, gritando coisas desconexas. Uma delas me chamou atenção na
fatídica noite insone. Por não conhece-la e não saber seu nome, usei uma gíria
para a apresentar a mim mesmo e a intitulei de “doida”. Mas não essas doidas
que os médicos chamam de loucos, esquizofrênicos, doentes mentais. Era, uma
doida, como os hippies, ou os surfistas de outras décadas chamavam as mulheres
que os acompanhavam em suas aventuras – os homens eram os doidos, claro. E
completei: a doida da Conde da Boa Vista.
Eu
estava sentado na poltrona, de costa para a janela. Os ruídos misturados, o
motor de um ônibus noturno – bacurau, uma moto de escapamento aberto, passando,
talvez, pela rua do Riachuelo, o falatório de gente discutindo por espaço na
marquise, a televisão de um vizinho que também não conseguia dormir, o gemido excitado
de dois amantes transando com a janela aberta, o compasso do relógio na parede
marcando a passagem dos segundos, um após o outro, e, então, os primeiros
gritos dela. Palavrões.
̶
Vá se foder...! Ele vai ver o que é
mexer comigo...! Aaaahhh...!
Me
levantei. A voz parecia de gente nova, gente que não era dos tais albergues.
Olhei
pela janela e a vi na esquina da rua do Hospício. Me perguntei de onde viria
aquela doida. Gritava, gesticulava e apontava para alguém que perecia não
querer se revelar. Alguém que se mantinha no escuro proporcionado pela sombra
da uma banca de revistas da esquina. Implorei em meus pensamentos para que se
revelasse. Em vão. A doida ficava só, na esquina. E gritava:
̶
Puto, você é um puto...! covarde...! eu
vou...!
Eu
precisava saber pra onde ela iria.
De
repente, fez menção de vir na direção aqui do prédio. Mas voltou e focou na
esquina dizendo seus impropérios ao misterioso das sombras.
Corri
para o quarto. Peguei a primeira bermuda que encontrei pendurada na cadeira e a
camiseta esquecida no puxador da porta. Era de mangas compridas com um capuz.
Decidi que iria vê-la de perto. Algo insano para àquela hora, e dadas as
pessoas com quem me depararia na rua. Olhei novamente pela janela e ela ainda
estava lá.
Fui
para o corredor do prédio. Apertei o botão do elevador. O motor gemeu. À noite
parece que ele reclama mais os anos de uso e a quantidade de gente que já
carregou, para cima e para baixo. E faz questão de se mostrar ainda mais lento
quando desejamos que seja ainda mais rápido.
Uma
ansiedade se bateu sobre minha mente. E se eu chegar embaixo e a doida tiver
sumido. Anda elevador, anda – pensei comigo. Quase roí as unhas. O porteiro vai
dizer a todo mundo que sou drogado. A essas horas saindo pra rua, para ver uma
doida, que parece estar muito doida. Esse sou eu conduzido pela agripnia e pela
falta de senso de perigo – ou pela irresponsabilidade mesmo.
O
elevador chegou embaixo com seu estalar característico exibindo a luz mortiça
de seu interior, e fez o porteiro da noite saltar das cadeiras conjugadas que
ele usava para dormir. Dormia no serviço, mas tinha o sono leve. Estranhou que
eu estivesse ali às duas e meia da manhã. Respondi que iria apenas ficar pela
frente do prédio, para respirar. Como se houvesse lugar específico para uma
melhor respiração. Ele trouxe uma cadeira para perto da porta e ficou alerta, quase
um protetor, ou, quem sabe, uma testemunha para o caso de alguém me agredir,
assaltar, ou cometer qualquer outro crime, sendo eu a vítima.
Abri
a porta. Me segurei um pouco. Lá de cima os sons são mais perceptíveis. Ao
nível do chão parece que as paredes os retém. Ouvi o esbravejar da doida. O sangue
inflou as minhas veias, pois o coração, de repente, disparou a uns cento e dez
batimentos por minuto. Mesmo assim saí. Olhei para trás e vi os olhos
esbugalhados do porteiro.
Um
vagabundo, deitado no vão da marquise de entrada da loja vizinha pediu um
cigarro. Respondi que não fumava. Não havia ninguém nas paradas de ônibus.
Olhei para as câmeras de monitoramento que o governo utiliza para nos espiar –
lembrei de George Orwell: “ninguém escapa à
vigilância do Grande Irmão”. Será que tem alguém olhando para nós agora?
Indaguei para mim mesmo. Acredito que de madrugada só os computadores estão
acordados, gravando tudo. O mais fica para depois, nas investigações.
Puxei o capuz para cobrir a cabeça e me sentei na parada do
ônibus. Pensei que se ela viesse para este lado, bem que poderia vir pelo lado
que eu estava, no sentido de quem vai para a Avenida Guararapes. Eu não me
atrevi a passar para o outro lado. Teria que dar a volta pela abertura do
cruzamento da rua Sete de Setembro. Não, minha irresponsabilidade não chegava a
tanto.
Meus pensamentos foram ouvidos. Ela apareceu justo no tal
cruzamento. Se eu tivesse ido iria dar de cara com ela, e podia ser que tomasse
aquilo como uma afronta. Senti os dedos das mãos esfriarem. Abaixei um pouco a
cabeça, em posição de reverência, demonstrando respeito.
A doida falava sozinha, mas parecia que o tal misterioso
anônimo a acompanhava. Levantei um pouco a vista para enxergar seus traços.
Estava vestida com um short jeans curto com as pontas das pernas desfiadas,
fazendo um contorno branco. A blusa era colorida e bem colada ao corpo.
Sandálias de borracha, dessas de tiras. Os cabelos eram escuros e desgrenhados.
Percebi que as unhas não estavam pintadas, mas pareciam crescidas e sujas, com
aquelas linhas pretas nas pontas. Uma barriguinha se destacava entre a blusa e o
short, mas não era gorda. A acompanhei com o olhar. A luz do poste revelou uma
bunda generosa. Se não fosse uma doida, poderia até encarar. Quem sabe como ela
consegue as coisas?
De repente, parou. Colocou a mão dentro do short, por trás,
no vão das nádegas, e tirou alguma coisa de lá. Girou o corpo, meio dobrado, me
olhou e sorriu. Tinha cara de doida mesmo. Os dentes da frente amarelados e
cheios de cárie – daquelas que corroem os dentes pelos lados e criam um arco
asqueroso.
Olhou para a ponte. Olhou de volta para mim, como se me
mostrasse seu objetivo.
Congelei. Na cabeceira havia um pequeno aglomerado de homens.
Dava para ver que se drogavam, fumando maconha e craque, essa droga destruidora
de pobres e ricos e que ainda vai fazer o país parar se não tomarem uma
providência logo.
Ela abriu o objeto e deu então para perceber que se tratava
de um canivete grande. Olhou para o grupo e soltou um daqueles gritos que dera
lá na rua do Hospício. Agora sim, um grito de mulher louca, não de uma simples
doida.
Abaixei a cabeça para não ver o que ela iria fazer. Foi
quando ouvi um estampido. Gritaria dos homens e dos albergueiros volantes.
Outro estampido seguido de um silêncio tumular. Parecia que todos haviam
desaparecido.
Alguns segundos depois ouvi o ruído de uma moto sendo ligada.
Dessas motos velhas, de cinquenta cilindradas. Um homem acelerou e partiu em
direção à avenida Guararapes. O som foi ficando longe, como se tivesse dobrado
a rua do Sol e ido para as bandas do bairro de São José.
Eu estava paralisado. Encolhido na parada de ônibus. Olhei
para a ponte e vi os homes se aglomerando. Moradores de rua se achegando para
ver o que aconteceu. Deu para ver os pés da doida. Um deles estava descalço e
sua cor indicava que a noite não terminara como talvez ela tivesse desejado.
Levantei e voltei para o prédio. O porteiro estava mais
assustado com a minha entrada do que na hora de minha saída. Olhei para ele e
apenas exclamei:
̶ Pois é!
O elevador me aguardava no térreo, como um servo obediente
aguardando as ordens de seu senhorio. Apertei o botão do sexto andar. O gemido
se repetiu e foi iniciada a lenta e solitária subida. Apesar de antigo, aquele
elevador estava intrigantemente suave. Como se estivesse subindo, elevando
minha alma aos céus e não para o sexto andar. Mas logo veio o tranco do freio,
o tilintar da campainha, e a luz indicativa: sexto andar. Verdadeiramente, o
céu é um lugar muito distante, e acredito que não seja para almas de pessoas
como eu e a da doida da Conde da Boa Vista.
Ricardo Frederico Banholzer
P.S.: Aos desavisados: o autor não mora na Av. Conde da Boa Vista.
Olinda / janeiro de 2015.
Meu caro digitador de palavras
ResponderExcluirSeus escritos foram notados
Compartilhe com o máximo de pessoas
Venha para o mais ranqueado site de publicação de textos gratuitos da língua portuguesa
Aqui você pode não gostar
Pode tudo
Proibido para menores
Venha beber um ponche de letras no Bar do Escritor
Publique seus textos e acompanhe-o em nossos rankings gratuitamente
FÓRUM DO BAR DO ESCRITOR
http://www.bardoescritor.com.br
Ótima crônica, de dar inveja. Relatou bem as mazelas de um bairro tão importante d numa cidade grande corroída pela ferida política da corrupção humana em todos os sentidos. Se aventure mais em crônicas desse tipo que vai dá um livro de respeito =]]]
ResponderExcluir