Viajantes Interplanetários

domingo, 4 de janeiro de 2015

A DOIDA DA CONDE DA BOA VISTA


Sabe aquelas noites em que você acorda e não consegue mais dormir? Aquela foi uma. Os sons da madrugada, no centro Recife, são mais intensos do que muita gente pensa. Ainda mais se você morar na Conde da Boa Vista, no trecho entre a Rua do Hospício e a Ponte Duarte Coelho.
Há dois sintomas espalhados pela cidade que parecem se intensificar nesse pequeno, mas turbulento, pedaço. O abandono pelo poder público e as pessoas que não têm casas, e fazem das marquises seus abrigos. Cada canto coberto de esquina, cada banca de revista, cada porta de loja que ofereça condições para uma pousada, lá eles se instalam com seus alojamentos de papelão. Lá eles instalam seus lugares onde defecam e urinam sem a menor cerimônia. Lá eles comem, bebem, fumam e fazem sexo.
Há mais uma coisa na Conde da Boa Vista que poucos percebem. Seus moradores, por já terem se acostumado e os passantes por serem, como acabei de dizer, passantes. Apenas os atentos identificam o odor de fumaça de óleo diesel misturado com excremento humano. A fumaça, deixada pelos milhares carros e ônibus que passam todos dias e o excremento, resultado dos albergues volantes de todas as noites.
Essas pessoas, dos albergues volantes, parece que não dormem. Ou então se revezam em vigília. Sempre se escuta alguém falando, reclamando, xingando, ou, simplesmente, gritando coisas desconexas. Uma delas me chamou atenção na fatídica noite insone. Por não conhece-la e não saber seu nome, usei uma gíria para a apresentar a mim mesmo e a intitulei de “doida”. Mas não essas doidas que os médicos chamam de loucos, esquizofrênicos, doentes mentais. Era, uma doida, como os hippies, ou os surfistas de outras décadas chamavam as mulheres que os acompanhavam em suas aventuras – os homens eram os doidos, claro. E completei: a doida da Conde da Boa Vista.
Eu estava sentado na poltrona, de costa para a janela. Os ruídos misturados, o motor de um ônibus noturno – bacurau, uma moto de escapamento aberto, passando, talvez, pela rua do Riachuelo, o falatório de gente discutindo por espaço na marquise, a televisão de um vizinho que também não conseguia dormir, o gemido excitado de dois amantes transando com a janela aberta, o compasso do relógio na parede marcando a passagem dos segundos, um após o outro, e, então, os primeiros gritos dela. Palavrões.
̶  Vá se foder...! Ele vai ver o que é mexer comigo...! Aaaahhh...!
Me levantei. A voz parecia de gente nova, gente que não era dos tais albergues.
Olhei pela janela e a vi na esquina da rua do Hospício. Me perguntei de onde viria aquela doida. Gritava, gesticulava e apontava para alguém que perecia não querer se revelar. Alguém que se mantinha no escuro proporcionado pela sombra da uma banca de revistas da esquina. Implorei em meus pensamentos para que se revelasse. Em vão. A doida ficava só, na esquina. E gritava:
̶  Puto, você é um puto...! covarde...! eu vou...!
Eu precisava saber pra onde ela iria.
De repente, fez menção de vir na direção aqui do prédio. Mas voltou e focou na esquina dizendo seus impropérios ao misterioso das sombras.
Corri para o quarto. Peguei a primeira bermuda que encontrei pendurada na cadeira e a camiseta esquecida no puxador da porta. Era de mangas compridas com um capuz. Decidi que iria vê-la de perto. Algo insano para àquela hora, e dadas as pessoas com quem me depararia na rua. Olhei novamente pela janela e ela ainda estava lá.
Fui para o corredor do prédio. Apertei o botão do elevador. O motor gemeu. À noite parece que ele reclama mais os anos de uso e a quantidade de gente que já carregou, para cima e para baixo. E faz questão de se mostrar ainda mais lento quando desejamos que seja ainda mais rápido.
Uma ansiedade se bateu sobre minha mente. E se eu chegar embaixo e a doida tiver sumido. Anda elevador, anda – pensei comigo. Quase roí as unhas. O porteiro vai dizer a todo mundo que sou drogado. A essas horas saindo pra rua, para ver uma doida, que parece estar muito doida. Esse sou eu conduzido pela agripnia e pela falta de senso de perigo – ou pela irresponsabilidade mesmo.
O elevador chegou embaixo com seu estalar característico exibindo a luz mortiça de seu interior, e fez o porteiro da noite saltar das cadeiras conjugadas que ele usava para dormir. Dormia no serviço, mas tinha o sono leve. Estranhou que eu estivesse ali às duas e meia da manhã. Respondi que iria apenas ficar pela frente do prédio, para respirar. Como se houvesse lugar específico para uma melhor respiração. Ele trouxe uma cadeira para perto da porta e ficou alerta, quase um protetor, ou, quem sabe, uma testemunha para o caso de alguém me agredir, assaltar, ou cometer qualquer outro crime, sendo eu a vítima.
Abri a porta. Me segurei um pouco. Lá de cima os sons são mais perceptíveis. Ao nível do chão parece que as paredes os retém. Ouvi o esbravejar da doida. O sangue inflou as minhas veias, pois o coração, de repente, disparou a uns cento e dez batimentos por minuto. Mesmo assim saí. Olhei para trás e vi os olhos esbugalhados do porteiro.
Um vagabundo, deitado no vão da marquise de entrada da loja vizinha pediu um cigarro. Respondi que não fumava. Não havia ninguém nas paradas de ônibus. Olhei para as câmeras de monitoramento que o governo utiliza para nos espiar – lembrei de George Orwell: “ninguém escapa à vigilância do Grande Irmão”. Será que tem alguém olhando para nós agora? Indaguei para mim mesmo. Acredito que de madrugada só os computadores estão acordados, gravando tudo. O mais fica para depois, nas investigações.
Puxei o capuz para cobrir a cabeça e me sentei na parada do ônibus. Pensei que se ela viesse para este lado, bem que poderia vir pelo lado que eu estava, no sentido de quem vai para a Avenida Guararapes. Eu não me atrevi a passar para o outro lado. Teria que dar a volta pela abertura do cruzamento da rua Sete de Setembro. Não, minha irresponsabilidade não chegava a tanto.
Meus pensamentos foram ouvidos. Ela apareceu justo no tal cruzamento. Se eu tivesse ido iria dar de cara com ela, e podia ser que tomasse aquilo como uma afronta. Senti os dedos das mãos esfriarem. Abaixei um pouco a cabeça, em posição de reverência, demonstrando respeito.
A doida falava sozinha, mas parecia que o tal misterioso anônimo a acompanhava. Levantei um pouco a vista para enxergar seus traços. Estava vestida com um short jeans curto com as pontas das pernas desfiadas, fazendo um contorno branco. A blusa era colorida e bem colada ao corpo. Sandálias de borracha, dessas de tiras. Os cabelos eram escuros e desgrenhados. Percebi que as unhas não estavam pintadas, mas pareciam crescidas e sujas, com aquelas linhas pretas nas pontas. Uma barriguinha se destacava entre a blusa e o short, mas não era gorda. A acompanhei com o olhar. A luz do poste revelou uma bunda generosa. Se não fosse uma doida, poderia até encarar. Quem sabe como ela consegue as coisas?
De repente, parou. Colocou a mão dentro do short, por trás, no vão das nádegas, e tirou alguma coisa de lá. Girou o corpo, meio dobrado, me olhou e sorriu. Tinha cara de doida mesmo. Os dentes da frente amarelados e cheios de cárie – daquelas que corroem os dentes pelos lados e criam um arco asqueroso.
Olhou para a ponte. Olhou de volta para mim, como se me mostrasse seu objetivo.
Congelei. Na cabeceira havia um pequeno aglomerado de homens. Dava para ver que se drogavam, fumando maconha e craque, essa droga destruidora de pobres e ricos e que ainda vai fazer o país parar se não tomarem uma providência logo.
Ela abriu o objeto e deu então para perceber que se tratava de um canivete grande. Olhou para o grupo e soltou um daqueles gritos que dera lá na rua do Hospício. Agora sim, um grito de mulher louca, não de uma simples doida.
Abaixei a cabeça para não ver o que ela iria fazer. Foi quando ouvi um estampido. Gritaria dos homens e dos albergueiros volantes. Outro estampido seguido de um silêncio tumular. Parecia que todos haviam desaparecido.
Alguns segundos depois ouvi o ruído de uma moto sendo ligada. Dessas motos velhas, de cinquenta cilindradas. Um homem acelerou e partiu em direção à avenida Guararapes. O som foi ficando longe, como se tivesse dobrado a rua do Sol e ido para as bandas do bairro de São José.
Eu estava paralisado. Encolhido na parada de ônibus. Olhei para a ponte e vi os homes se aglomerando. Moradores de rua se achegando para ver o que aconteceu. Deu para ver os pés da doida. Um deles estava descalço e sua cor indicava que a noite não terminara como talvez ela tivesse desejado.
Levantei e voltei para o prédio. O porteiro estava mais assustado com a minha entrada do que na hora de minha saída. Olhei para ele e apenas exclamei:
̶  Pois é!
O elevador me aguardava no térreo, como um servo obediente aguardando as ordens de seu senhorio. Apertei o botão do sexto andar. O gemido se repetiu e foi iniciada a lenta e solitária subida. Apesar de antigo, aquele elevador estava intrigantemente suave. Como se estivesse subindo, elevando minha alma aos céus e não para o sexto andar. Mas logo veio o tranco do freio, o tilintar da campainha, e a luz indicativa: sexto andar. Verdadeiramente, o céu é um lugar muito distante, e acredito que não seja para almas de pessoas como eu e a da doida da Conde da Boa Vista.

Ricardo Frederico Banholzer

P.S.: Aos desavisados: o autor não mora na Av. Conde da Boa Vista.

Olinda / janeiro de 2015.

2 comentários:

  1. Meu caro digitador de palavras
    Seus escritos foram notados
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  2. Ótima crônica, de dar inveja. Relatou bem as mazelas de um bairro tão importante d numa cidade grande corroída pela ferida política da corrupção humana em todos os sentidos. Se aventure mais em crônicas desse tipo que vai dá um livro de respeito =]]]

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