Viajantes Interplanetários

sexta-feira, 2 de março de 2012

VISÃO PERIFÉRICA: Conversas com o Imbuá

Há de se entender que o começo do imbuá não é sua cauda, afinal de contas, não é com a cauda que ele conta suas histórias. Confesso, porém, que já escutei uma ou duas histórias contadas por caudas indiscretas de um ou outro, mas hoje essas coisas mudaram. Os imbuas não tagarelam mais com todas as partes do seu corpo. Eles se tornaram mais reservados. Soturnos. Arredios.
Você já notou que não é mais tão fácil encontrar os imbuas como quando éramos crianças, Fernando? Acho que eles aprenderam a se esconder de nós.
Lembra-se quando escutávamos os seus estalos embaixo de nossos pés? Lembra-se de quando juntávamos cinco ou seis deles e queimávamos numa fogueira?
Como éramos maus no auge de nossos nove anos. Éramos os senhores da vida e da morte. Podíamos fazer de tudo. Fazíamos nossa própria inquisição de abelhas, formigas, lesmas ou quaisquer outros seres que chamávamos genericamente de “insetos”, classificação esta que determinava basicamente tudo o que não tinha osso, creio eu, assim como os camarões... Não. Os camarões eram de água, então eram meio que “peixes”.
Tudo passava por um julgamento. Rã não era inseto. Calango também não. Passarinho também não, claro.  Estes eram “bichos”, que é algo completamente diferente de “inseto” e de “peixe”.  Por isso, mereciam nossa clemência: um apedrejamento piedoso do seu badoque, que parecia ter mira a laser e sempre acertava as cabeças das lagartixas; enquanto o meu, pouco acurado, deixava-as na maior parte das vezes escapar.
Mas os insetos... ah... eles não sabiam o que lhes esperava... Arrancávamos patas, perfurávamos os seus corpos com gravetos e assistíamos ao espetáculo da morte em nosso jardim.
Eles eram só “insetos” e nós, deuses do jardim.
E sempre havia aquele grito que movia os nossos mais primitivos instintos: “achei um.” Nossos preferidos eram os imbuas. Estranha predileção esta, que nos fazia arrancar suas cabeças, tostá-los até que virassem um estranho caracol de carvão e senti-los, depois, estalando-se embaixo de nossos pés. Pobres diabos. Morriam sem saber o porquê, sem nunca ter feito um nada qualquer, sem que o universo se desse por conta dele. Só nós e o seu trágico fim.
Alguns contavam-nos suas histórias a fim de tentar reduzir nossa fúria ou conseguir marejar nossos olhos. Vãs tentativas. Frustradas todas elas. Todos insetos sabem que somente duas coisas podem trazer lágrimas aos olhos de um deus aos nove anos: uma boa surra ou ferroada. E, enquanto, mãe ou qualquer animal não consiga fazer nenhuma delas, precisavam sujeitar-se a nós.
Mas hoje essas coisas mudaram, não foi mesmo, Fernando?! Não há mais prazer algum em torturar uma criatura tão indefesa quanto essa. Não há mais prazer em matar. Essas coisas ficaram na infância. A morte era um jogo, uma brincadeira como outra qualquer, como jogar bola ou correr. Recorda-se como corríamos, no meio da tarde, as gargalhadas.
Sinto tanta saudade daquele tempo, irmão. Sinto falta dos seus olhos travessos e do seu sorriso cúmplice impossível de copiar. Já tentei desenhá-lo tantas diversas vezes, mas nunca fica bom. Tentei sem sucesso encontrá-lo em alguma foto. Não que você não fosse muito risonho; de fato, você sorriu sempre dentro de um nível saudável para uma criança de sua idade e as fotos mostram isso. Só que nenhum de nossos antigos álbuns guarda esse sorriso que me lembro em seu rosto tão anguloso, tão parecido com o de pai. Tento usar-me como modelo. Ponho-me em frente ao espelho tentando reproduzir algo daquele seu sorriso, mas sempre me sai falso, estranho ou velho demais. Não é como o seu. Gostaria de ser um pintor de verdade para fazer exatamente como eu me lembro. Mas não foi isto o que me tornei. Nem isso, nem astronauta.
As coisas mudaram.  Os tempos passaram, marcaram meus anos no traçado de minha testa e nos cabelos que estão mais esparsos. Os dias pararam de demorar tanto. Agora eles aceleram que nem Senna... não... que nem o Flash. E, de repente, quando olho para trás, outros dez anos se foram e não tivemos notícias um do outro.
Lembro-me de como você arrancava as pernas: uma a uma do imbua. Não existia no céu ou na terra maior torturador que você, Fernando! Nada era páreo para a sua sede de vísceras esbranquiçadas. Nem o seu caracol nem ninguém poderiam proteger o pequeno ser.
Mas as coisas mudaram muito. Disseram-me, um dia desses, que as pernas finas de alguns podem até transformar-se em duras agulhas que perfuram com facilidade a sua pele. Em meu ceticismo, duvidei que pudesse ser verdade. Obviamente, deveria se tratar de mais uma dessas coisas idiotas que gente vê na tevê. Duvidei até ter o primeiro contato com um desses seres vingativos que me atacou e deixou toda uma bochecha cheia de espinhos que mais pareciam um cacto. Demorei dois dias encontrando um e outro espinho ainda perdido na cara, mesmos depois de catar com uma pinça.
Esses não os mesmos imbuas daquele tempo. O imbua, entre os insetos, era o mais pacífico de todos, como ele só uma criatura que ironicamente deu-se por chamar soldadinho. Verdadeiros budas, frente a tudo o que lhes fazíamos. Se fossemos hindus, teríamos muito kharma para queimar... Talvez ainda tenhamos. E toda essa distância de nossas solidões seja parte disso. Será?
Será que tudo o que nos aconteceu foi parte do kharma ganho em nossa inocência macabra? Pobres diabos de nós se houver outra vida. Voltaremos como parasitas, talvez uma tênia ou uma barata ou um fungo. E teremos que rastejar, morar em esgotos ou intestinos humanos, talvez de porcos... sobreviveríamos talvez a um holocausto nuclear, coisa que nenhum de nós dois agora poderíamos fazer. Mas somente se os deuses forem tão cruéis quanto éramos... Ah! Fernando, ah! Aí voltaremos como imbuas, no quintal de um garoto por setenta vezes.
Digo setenta porque considero já estar pagando boa parte deste kharma nesta vida agora. Tudo o que nos aconteceu, Fernando. Éramos tão jovens.
Como aquilo aconteceu? Você se lembra? Eu não consigo me lembrar. Será que foi aquela noite depois do jantar, que você ficou com aquele seu olhar distante no jardim? Ou foi quando pai trouxe aquele disco que tinha aquela música que você gostou tanto? Será? Será que foi a música que mudou tudo? Ou fui eu? Talvez a culpa seja minha, não sua, nem de deus, Fernando.
Talvez eu seja, Fernando, o único culpado. Eu tive que adquirir esse tom meio que cerimonial em minha voz. Eu tive que remendar meus pensamentos mais confusos para tentar nos explicar. A culpa deve ser minha e, por isso, hoje, estamos tão separados e sós. Não seria honesto culpa-lo. Não foi culpa sua.
Seria humano culpar os deuses, pois fomos deuses na infância e aprendemos bem o que eles fazem. Conhecemos suas benevolências, caprichos e sorrisos. Mas talvez, os deuses tenham outra tarefa de casa por hoje.
Deve ter sido minha culpa.
Eu deveria tê-lo segurado enquanto girávamos, eu poderia ter segurado você. Talvez você não tivesse voado para tão longe.
Mas os imbuas ao enrolar-se em caracóis tem aquela triste tendência de contorcer-se em volta de sua cabeça, protegendo-a. Tal qual nós fazemos em pânico, quando caímos no chão. Quando choramos e soluçamos.


8 comentários:

  1. Você me fez lembrar da "Chácara Fortuna" - sítio de meus avós - em Juazeiro do Norte - onde eu passava as férias...quando ainda morava em SP e para onde fui residir, depois que minha mãe virou "encantada". Eles apareciam mais no inverno e eu, no começo, "caipira da cidade grande" - como meu pai chamava, então, morria de medo deles. Mas quando descobri que eles eram como está em seu texto, fui me acostumando e até me divertia muito com eles.

    Belo texto!

    Abraço do Pedra do Sertão

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  2. Lucas, muito bom o seu texto. Me lembrou algumas maldades que fazia na infância, empalando marimbondos, queimando formigas, jogando bolinha de gude com os tatuzinhos...

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  3. Pois é, pessoal. É o perigo de saber-se deus... hehehe

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  4. Que texto Lindo *-*
    Quem ficou aqui já chorando fui eu...
    Minhas vítimas preferidas eram mesmo os soldadinhos e as formigas.
    Parabéns pelo texto Lucas,
    Abraços.

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    1. as formigas sempre se lascavam na minha mão - eu era um inseto... era? kkkkkkkkkkkk

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  5. Que bom que gostaram. :)
    Falar da infância sempre traz algo forte de sentimento em comum para muitos.
    Nostalgia.

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    1. Nostalgia total - o som do embua estalando kkkkkkkkkk
      nunca pisei em um, creiam! kkkkkkkkkkkk

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  6. vc era mau mesmo kkkkkkkkkkkkk eu só fazia mal mesmo as formigas, pobres formigas kkkkkkkkkkkk
    70 vezes nas mãos de garotos de nove anos é um senhor karma - é um inferno kkkkkkkkkkkkkkkk
    NO mais o tempo anda rápido mesmo - e que saudade que sinto dos meus times de botao, de jogar bola na rua... De ficar secabdo a vizinha uauauaa
    Hoje a vida não é mole.
    Hoje fomos rebaixados a demônios - pequenos demônios ploletários.

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